Após negativa da Prefeitura, em relação às recomendações do MP sobre ações relacionadas à implantação do Centro de Centro de Controle de Zoonoses, Promotoria deve ingressar com Ação Civil Pública contra o poder público municipal. Prefeitura estaria fugindo de sua responsabilidade primária e jogando essa responsabilidade para a Associação Cão Amigo.
leia o Despacho na íntegra
Inquérito Civil n.º: 06.2018.00000439-9
DESPACHO MINISTERIAL
Trata-se de Inquérito Civil instaurado no intuito de proceder ao acompanhamento da implementação de ações pelo Poder Público Municipal voltadas à implantação do Centro de Controle de Zoonoses com fins à vigilância, à prevenção e ao controle de zoonoses, com ênfase na prevenção às doenças: cinomose e leishmaniose, inclusive, visando evitar acidentes causados por cães abandonados, doentes e/ou maltratados nas ruas da cidade.
No decorrer processual, foram encaminhados expedientes ministeriais à Prefeitura Municipal de Tarauacá, solicitando informações quanto as providências adotadas em relação ao centro de zoonoses, de modo que o município quedou-se inerte tocante as respostas à Promotoria de Justiça Cível de Tarauacá.
Após, este Parquet expediu a Recomendação nº 04/2022, datada de 17 de julho de 2022, em face da Prefeita de Tarauacá e dos Secretários Municipais de Saúde, Meio Ambiente e Planejamento, pela qual recomendou-se a adoção de providências cabíveis quanto ao objeto do referido procedimento, conforme ementa:
Inquérito Civil instaurado no intuito de proceder ao acompanhamento da implementação de ações pelo Poder Público Municipal voltadas à implantação do Centro de Controle de Zoonoses com fins à vigilância, à prevenção e ao controle de zoonoses, com ênfase na prevenção às doenças: raiva, leptospirose, toxoplasmose e esporotricose, além da cinomose, inclusive, visando evitar acidentes causados por cães e gatos abandonados, fontes de doentes, fontes de infecções e/ou maltratados nas ruas da cidade. Recomendação administrativa visando a implementação do Centro de Zoonoses de Tarauacá, no prazo de 04 (quatro) meses, bem como realização de campanha de vacinação e adoção de cães e gatos - vez que animais são seres sencientes -, com contratação/parceria de médico veterinário para a castração cirúrgica desses animais, divulgando nas redes sociais a necessidade da prevenção ao crime de crueldade contra animais, sob pena de Ação Civil Pública, com cominação de multa diária;
Eis a síntese do indispensável.
Frisa-se inicialmente que a Recomendação foi encaminhada para a Prefeitura de Tarauacá e para as respectivas Secretarias via e-mail institucional, no dia 28/07/2022, conforme comprovante de envio (fls. 207).
Acontece que somente no dia 26/09/2022, 60 (sessenta) dias depois, por meio do OF./EXP/Nº274/SEMSA/2022, aportou nesta Promotoria de Justiça Cível a resposta do Poder Público sobre o atendimento à Recomendação Ministerial.
Conforme a referida resposta da gestão municipal, assinada pela Prefeita de Tarauacá e pelos Secretários de Saúde, Meio Ambiente e de Planejamento, informaram a impossibilidade de atender a Recomendação do MP-AC quanto as providências iniciais a serem adotadas, bem como a inviabilidade em relação a construção do Centro de Zoonoses do Município de Tarauacá, deixando claro que seria "escolha discricionária da gestão acerca do melhor que atender aos interesses da Administração".
Entrementes, em que pese mais uma vez a alegação por parte da Prefeitura, acerca da impossibilidade de o Poder Judiciário intervir em condutas administrativas que são de competência da Administração Pública executar, tem-se de ponderar o seguinte:
Primeiro, é plenamente possível o controle do mérito administrativo pelo Poder Judiciário, sob o crivo da PROPORCIONALIDADE ou RAZOABILIDADE.
Em suma, a análise do mérito do ato administrativo não atenta contra o princípio da separação dos poderes, até porque o texto constitucional em seu artigo 5º, inciso XXXV infere que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Portanto, quando houver lesão ou ameaça a direito atrairá para o Judiciário o dever de enfrentar o caso, o que inclui a possibilidade de análise do mérito do ato administrativo;
Segundo, cabe registrar que a Administração Pública não pode valer de seu poder discricionário para praticar ato que atente contra os princípios constitucionais, até porque discricionariedade não se confunde com "arbitrariedade".
O administrador público, como o particular, também deve obediência à Lei, portanto, o Poder Judiciário pode realizar o controle de LEGALIDADE e JURIDICIDADE do mérito do ato administrativo, para fins de verificar se o ato administrativo está em conformidade com a norma vigente;
Terceiro, o próprio Supremo Tribunal Federal entende ser possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de POLÍTICAS PÚBLICAS constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo.
Não é outro o entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, ao afirmar no Recurso Especial n.º 429.57018 – GO que o Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.
Neste sentido, não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que receberam mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta a liberdade de conformação do legislador, nem da atuação do Poder Executivo.
Analisando o caso concreto, percebe-se que a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, no art.18, inciso IV, alínea "a", estabelece a obrigação do Município, dentro do Sistema Único de Saúde, de executar os serviços de vigilância epidemiológica, incluindo-se os centros de zoonoses, uma vez que se tratam de serviços públicos de interesse predominantemente local.
Por conseguinte, o que se constata é, mais uma vez, a tentativa leviana por parte da Prefeitura de "lavar as mãos" e jogar a responsabilidade do Poder Público Municipal para uma Associação, enquanto pessoa jurídica de direito privado.
Doutro lado, observa-se que o convênio no valor de R$ 2 mil reais mensais que a Prefeitura mantém com a "Associação Cão Amigo" não supre nem a metade das necessidades e custos em relação a vacinas, castrações, cirurgias, remédios, exames e outros.
Inclusive, constou expressamente do item 2, alínea "a" da Recomendação, a necessidade de previsão expressa de vagas para Médicos Veterinários no Edital do Concurso Público a ser realizado pelo Município, justamente, visando a realização de CASTRAÇÃO CIRÚRGICA desses animais.
Todavia, contraditoriamente, e mesmo ciente das prementes necessidades na área da saúde, a Prefeitura recorreu da decisão do Juiz a quo, sendo que a Desa. Eva Evangelista cassou a decisão do Juízo da Vara Cível de Tarauacá, no âmbito do Agravo de Instrumento nº 1001507-09.2022.8.01.0000, especificamente no ponto em que o douto Magistrado havia determinado a realização de concurso público, em prazo de 60 (sessenta) dias, e sob pena de multa.
Em suma, a i. Desembargadora desconsiderou as peculiaridades do caso concreto, e a proximidade dos fatos pelo Ministério Público e pelo Juiz a quo, adentrando em questões orçamentárias e de prioridades, sem ter informações concretas sobre as reais necessidades do Município, senão vejamos:
Na espécie, entendo que a obrigação de fazer em debate - realização de concurso público para determinado setor – torna necessária minuciosa análise orçamentária e de prioridades, pena de privilegiar um setor deficitário em desfavor de outros, a exemplo da saúde (fl.95 do Agravo de Instrumento) (destacamos)
Ora, já houve a ANULAÇÃO judicial do último Concurso Público municipal, conforme Edital publicado em 2020. A decisão judicial constou do Processo nº 0701251-68.2020.8.01.0014, e foi divulgada no site do próprio TJ/AC.
Em outras palavras, a NECESSIDADE das vagas já estava REVELADA e estampada desde os idos de 2020.
Ora, estamos já no último trimestre de 2022, e não existe sequer médicos veterinários concursados pelo Município de Tarauacá, nem psicólogos em quantidade minimamente suficiente, e nem Médicos Clínicos Gerais concursados pelo Município, nem Nutricionistas, nem Dentistas, e nem Técnicos Auxiliares em Saúde Bucal em quantidade suficiente.
Por essas, e outras razões, o Parquet está recorrendo em segundo grau a fim de reformar a decisão da douta Desembargadora pelo próprio Tribunal de Justiça do Estado do Acre.
Por outro lado, tem-se nos autos que a Associação Cão Amigo funciona com 04 (quatro) funcionários pagos pela Prefeitura, sendo que todos recebem o valor de um salário mínimo.
Ou seja, é clara e inequívoca a dedicação e o zelo de tais profissionais à causa animal - sejam seles abandonados ou acidentados -, com a devida vênia, mesmo sem serem devidamente valorizados pelo Poder Público, dada a importância, a dificuldade e a nobreza das funções.
Basta perguntar quem está eventualmente disposto a trabalhar e cuidar de cerca de 90 (noventa) cães, nas mesmas condições, e com a mesma estrutura precária.
Sob tal prisma, observo ainda que, ao revés, a Prefeita de Tarauacá, no início deste ano encaminhou um PL à Câmara Municipal de Vereadores, visando aumentar o salário dos Secretários Municipais, em torno de 77%, saltando de R$ 4.500 reais para R$ 8.000 reais.
Ou seja, tudo é questão de escolha pela Gestão!
Outro ponto, que chama atenção, seria em relação ao alto custo financeiro para implantação de um Centro de Zoonoses, sendo que já foi previsto um prazo razoável de 01 (um) ano para tanto. E frise-se, mais uma vez, que essa necessidade já existe há tempo considerável.
Todavia, percebe-se, mais uma vez, que se trata da citada "escolha discricionária da gestão", conforme expressão citada no Ofício nº 274-SEMSA-2022, de 26 de setembro de 2022.
Ao revés, constata-se que para a realização do Show do cantor Amado Batista, com duração de apenas 80 min, a Prefeitura se planejou e correu atrás de um Convênio com o Estado do Acre, o qual segundo consta, repassou R$ 250 mil reais a fim de bancar a aludida atração nacional, inclusive, mesmo com valorosos cantores locais à disposição para PROMOVEREM A CULTURA LOCAL e serem ainda mais valorizados pela Gestão municipal.
Questiona-se se seria factível o Município buscar a realização de Convênios com o Estado, visando, por exemplo, a implantação do Centro de Zoonoses, a implantação de um Abrigo Municipal, a aquisição de caminhão coletor e compactador de lixo, aquisição de equipamentos para fortalecer a saúde municipal, enfim.
Sob tal prisma, em que pese a citação pelo Município de que recomendação expedida pelo Parquet tem teor "meramente explicativo", é preciso ESCLARECER ao Poder Público municipal que o próprio art. 1º, parágrafo único, da Resolução CNMP nº 164-2017, diz que a recomendação é um instrumento de "prevenção de responsabilidades ou correção de condutas".
Isso por que um dos fortes mecanismos de atuação extrajudicial do Ministério Público, que decorre da Constituição e está previsto expressamente no plano infraconstitucional, é o mecanismo da Recomendação, o qual poderá ser dirigido ao Poder Público em geral, a fim de que sejam respeitados os direitos assegurados constitucionalmente.
Nesse lume, o art. 6º, inciso XX, da LC nº 75/93 dispõe:
“Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:
XX- expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a ADOÇÃO DAS PROVIDÊNCIAS CABÍVEIS.” (destacamos)
Por conseguinte, parece ser contraditória a conclusão da Prefeitura, de que o teor da recomendação é meramente explicativo, afinal, fosse assim, a própria Lei Complementar não determinaria a possibilidade de prazo para adoção de providências cabíveis.
Isto posto, considerando o disposto na Recomendação Ministerial nº 04/2022 (fls. 200/206), bem como a advertência expressa à fl.205 dos autos, DETERMINO:
1. Faça-se destes autos conclusos para propositura de Ação Civil Pública contra o Poder Público municipal, com cominação de MULTA diária, em relação à Prefeita de Tarauacá, Secretário Municipal de Saúde, Secretário Municipal de Meio Ambiente e Secretária Municipal de Planejamento, responsáveis solidariamente na consecução do objeto deste procedimento, visando a implantação de um Centro de Zoonoses, com fulcro no controle da legalidade do mérito administrativo, e de que não cabe ao Poder Público municipal jogar a responsabilidade por cães e gatos abandonados, para a Associação Cão Amigo, como se estivesse fazendo "um favor" à sociedade, quando, na verdade, a responsabilidade primária é da própria Prefeitura, no âmbito do controle, vigilância e prevenção de zoonoses, e na esteira do art.18, inciso IV, da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990;
2. Dê-se publicidade ao presente despacho, por se tratar de direitos e interesses difusos, relacionados ao controle, vigilância e prevenção de zoonoses em Tarauacá-AC, e pelo fato de já ter sido expedida uma recomendação anterior sobre o assunto.
Tarauacá-AC, 27 de setembro de 2022.
Júlio César de Medeiros Silva
Promotor de Justiça
(Assinatura Digital, nos termos do Art.1º, § 2º, III, “a”, da Lei nº 11.419/06)