A reforma trabalhista, que completa um ano de vigência neste domingo (11), desequilibrou as relações trabalhistas a favor das empresas, criou insegurança jurídica e não trouxe os empregos prometidos. Essa é a avaliação do procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury.
Em entrevista ao UOL, Fleury afirmou que não há motivo para comemorar a queda de ações trabalhistas na Justiça. Segundo ele, não é que as empresas estejam respeitando mais a legislação trabalhista, mas, sim, os trabalhadores ficaram com receio de buscar seus direitos, temendo ter de arcar com os custos do processo judicial se perderem. “A Justiça gratuita na Justiça do Trabalho foi praticamente extinta com a reforma.”
Ele também defendeu que só se criam empregos com crescimento econômico e disse que ainda não viu “nenhum efeito positivo” da reforma. Leia abaixo.
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O senhor fez fortes críticas à reforma na época da tramitação. Qual seu balanço dos efeitos dela?
O que cria emprego não é a flexibilização da legislação trabalhista, e sim o desenvolvimento da economia.
Durante esse um ano, só houve efetivamente a criação de empregos a partir dos dois últimos meses, quando o país voltou a crescer, ainda que timidamente. Tudo que o MPT [Ministério Público do Trabalho] falou desde o início foi o que de fato aconteceu. Não porque nós fomos visionários, mas porque o nosso posicionamento foi baseado em experiências de outros países, como o México e a Espanha.
Houve precarização das relações de trabalho, como o senhor temia?
A criação de “empregos alternativos”, como nós chamamos o contrato intermitente e a “pejotização” [contratação de empregado como pessoa jurídica], está muito tímida. É difícil até de dimensionar.
Por exemplo, vamos supor que eu tenho um bufê e contrato 30 garçons intermitentes, mas, durante um mês, não faço nenhuma festa. Mesmo sem terem trabalhado, esses garçons contam como 30 novos empregos. Pode acontecer também de um único trabalhador ter dez contratos intermitentes. São dez novos postos de trabalho? Não, porque só um trabalhador foi tirado do desemprego. Então, são números muito complicados de avaliar.
E os rendimentos do trabalhador foram afetados?
Os dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] têm mostrado uma diminuição gradativa da renda média. Os contratos têm sido firmados com salários menores, e está ocorrendo um aumento do nível escolar de quem acessa trabalhos de menor remuneração. Pessoas com nível [escolar] superior estão deixando de trabalhar em funções compatíveis com a sua formação para trabalhar em funções com menor exigência. Isso é resultado do desemprego e, também, de um processo de precarização das próprias relações de trabalho.
Como o MPT tem atuado em relação à aplicação da reforma?
Em momento nenhum deixamos de aplicar os preceitos da reforma. Obviamente, fazemos as interpretações que entendemos corretas, porque esse é o nosso trabalho. Basicamente, o que fazemos é combater as fraudes.
Por exemplo: o STF [Supremo Tribunal Federal] decidiu que a terceirização ampla está permitida, mas o próprio STF deixou claro também que terceirização é diferente de mera intermediação de mão de obra. Eu terceirizo um serviço, e não a contratação de um trabalhador.
Por exemplo, eu vou montar um jornal e quero contratar um jornalista. Eu não posso contratar uma empresa e dizer que ela é que vai contratar o jornalista. Isso continua proibido. O que eu posso fazer é terceirizar uma atividade do jornalismo, como o jornalismo econômico, que vai ser feito por uma empresa. Nesse caso, se essa empresa quer contratar o Joaquim, o José ou o Serafim, eu não posso fazer nada, porque eu contratei um serviço, e não pessoas.
A segurança jurídica aumentou ou diminuiu com a reforma?
É natural não termos segurança jurídica ainda, porque é uma reforma que mexeu com 117 artigos da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] e foi aprovada sem discussão. É normal que haja um processo de amadurecimento, discussão e interpretação dessa norma.
Dito isso, a reforma foi tão profunda e sem limites a favor do empregador que ela gerou muito mais insegurança do que segurança.
Por exemplo, o contrato intermitente foi permitido amplamente. Uma indústria que tenha natureza permanente pode contratar como intermitente? Ou só as de natureza intermitente, como um bufê? Essas questões são passíveis de interpretação.
O volume de novas ações na Justiça do Trabalho caiu significativamente. Isso não é positivo?
Eu comemoraria se estivesse acontecendo diminuição do descumprimento da legislação trabalhista. A redução é por isso ou pelo receio que as pessoas agora têm de acionar a Justiça e serem penalizadas?
Temos um dado do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] que mostra que mais de 50% das ações trabalhistas se referem ao pagamento de verbas rescisórias, como aviso prévio, 13º salário e férias proporcionais. Será que, com a reforma, as empresas passaram a pagar as verbas rescisórias? Ou será que o trabalhador agora decide não entrar na Justiça para pedir o aviso prévio para não correr o risco de ter que pagar para a empresa?
A Justiça gratuita na Justiça do Trabalho foi praticamente extinta com a reforma. Criaram tantas coisas para evitar que o trabalhador acesse a Justiça, que isso praticamente inviabilizou que ele entre com uma ação. Então, não há o que comemorar.
O acionamento do MPT também diminuiu?
Não houve nenhuma diminuição nas demandas do MPT. Nossos números mostram até um ligeiro aumento no número de denúncias que chegam até nós. Um trabalho que tem crescido muito no MPT é o de mediação, de auxílio na negociação coletiva. As empresas e os sindicatos pedem, e o MPT tem feito esse trabalho de aproximação das partes, de tentar facilitar a negociação.
Há alguma relação entre esse crescimento e o fato de a nova lei determinar a prevalência do acordado sobre o legislado?
Sim, e também com o fato de ter acabado com a ulterioridade [posterioridade] da convenção coletiva. Pela legislação anterior, enquanto não houvesse novo acordo ou convenção, as condições previstas naquele acordo permaneceriam intactas, até a nova convenção. Com a reforma, aquelas condições só valem durante o período determinado pelo acordo.
Digamos que um sindicato de trabalhadores tem um acordo com o sindicato patronal estabelecendo o pagamento de vale-refeição. Quando acabar o período da convenção coletiva, se não tiver outra para substituí-la, a empresa pode parar de pagar o vale-refeição.
Sem o imposto sindical obrigatório, os sindicatos estão conseguindo representar os trabalhadores nas negociações?
Não. A relação era equilibrada, e a reforma tirou o equilíbrio. O imposto sindical correspondia a 70% a 80% do custeio das entidades sindicais de trabalhadores. Já para as entidades sindicais das empresas, correspondia só a 10%. No caso das entidades patronais, mais de 60% do custeio vem do sistema S, e ninguém mexeu nisso. Então, elas continuam hígidas [sadias] do ponto de vista econômico. Já as entidades obreiras foram muito atingidas. Várias foram inviabilizadas. Os sindicatos estão tendo que se reinventar.
O governo editou uma MP para alterar alguns pontos da lei, mas ela já perdeu a validade. Está fazendo alguma falta?
Sim, muita falta. Por exemplo, na questão do trabalhador intermitente. Se ele ganha menos que um salário mínimo no mês, vai pagar recolhimento da Previdência proporcional ao que ganhou. Mas, como a contribuição não vai atingir o mínimo, ele não vai ter nenhum benefício da seguridade social, como auxílio-doença ou licença-maternidade. E aquele mês não vai ser computado para efeito de aposentadoria.
Um trabalhador que tenha contrato intermitente por dez anos sem atingir um salário mínimo por mês não vai somar um mês sequer para efeito de aposentadoria. Ele está num limbo jurídico, que a MP tentava consertar.
Muitos trabalhadores estão optando por não ter carteira assinada. Eles pensam: “Já que eu não vou ter nenhum benefício, que pelo menos eu não tenha desconto”. Talvez isso explique o aumento vertiginoso no trabalho informal.
Houve algum efeito positivo, na sua opinião?
De tudo que até hoje eu já analisei, que chegou ao meu conhecimento, ainda não vi nenhum efeito positivo. Por exemplo, falaram muito que a reforma ia acabar com a informalidade. Aumentou a informalidade. Falaram que ia criar emprego, não criou emprego.
O então ministro, Ronaldo Nogueira, e o próprio presidente Temer falaram em criar 5 milhões de empregos. Agora é que estamos vendo alguma criação de vagas, não como consequência direta da reforma, mas muito mais como consequência de um tímido crescimento econômico, que foi mais ou menos o que aconteceu nos anos 2000. O Brasil teve crescimento econômico bastante consistente, e nós chegamos praticamente ao pleno emprego, e com a legislação anterior.
fonte: uol