A literatura como possibilidade para se perceber e/ou evitar casos de crueldade, grosso modo, pode-se dizer, foi uma das grandes contribuições do pensamento filosófico do norte-americano Richard Rorty (1931-2007), o filósofo da cultura, considerado como um dos maiores da contemporaneidade. Para Rorty, narrativas literárias foram mais eficientes para chamar a atenção para casos de crueldade e sofrimento, ignorados por grande parcela de pessoas, do que muitas teorias filosóficas. A literatura, por esse viés, não serve apenas para o deleite humano, mas é um instrumento moralizante, que serve aos ideais de liberdade e ampliação da visão de mundo e da cultura de cada um.
Ainda na perspectiva rortyana, as descrições detalhadas de variedades particulares de dor e humilhação, descritas, por exemplo, em romances ou etnografias, foram as principais contribuições do intelectual moderno para o progresso moral, e não os tratados filosóficos. Por isso, ele é categórico quando afirma que uma literatura que não se conecta com alguma coisa, que não tem nenhum assunto e nenhum tema, que não tem uma moral escondida na manga, e que carece de um contexto dialético, é apenas blábláblá. Isto é, sem valor algum.
Ao descreverem situações reais ou aquelas que um dia podem vir a ser, os romancistas apontam para muitas situações de sofrimento, dor ou humilhação que a sociedade, muitas vezes, não vê, ou ignora. Faz-se necessário perceber o sofrimento alheio, sobretudo para poder evitá-lo. Nesse sentido, a obra, “O Santo de Deus” (Edições Bagaço, 2009), do escritor acreano Moisés Diniz, torna-se uma das mais importantes no atual cenário das letras acreanas. Diniz escreveu um livro que não serve apenas a cultura regional, dado as particularidades do enredo, mas serve a humanidade, por ter, naquilo que é possível, perscrutado o mais profundo do ser e agir humano.
Moisés Diniz segue aquela tradição, rara, mas fértil, de homens da política e das letras. É um poeta de exclamações populares, um político de sonho comunista e um romancista com profunda cultura humanista. Como ele, orgulhosamente, costuma se referir às suas origens é “neto de nordestinos de Riacho do Sangue, no Ceará, e índios Ashaninkas das margens do Rio Amônia, em Cruzeiro do Sul, no Acre”, terra em que nasceu. Ainda jovem ingressou na Congregação dos Irmãos Maristas, aonde chegou a ser noviço e a professar os votos religiosos (pobreza, castidade e obediência). Porém, deixou a congregação algum tempo depois. Formou-se em Pedagogia (UFAC), e, em 1985, se estabeleceu em Tarauacá. Aí fora professor e “ajudou a organizar sindicatos de trabalhadores urbanos e extrativistas, organizações comunitárias, juvenis, indígenas, de cultura e de mulheres”. Do engajamento com as lutas sociais nasceu o seu pendor para a política. Desde então chegou a ser vereador e vice-prefeito, em Tarauacá, e, atualmente, exerce o terceiro mandato como deputado estadual.
O romancista australiano Morris West declarava que não gostava de reconstruir as histórias verdadeiras porque elas continham frequentemente mais ficção que seus próprios romances. Por esse prisma, a assertiva de West se concatena de modo formidável com “O Santo de Deus”. A história assemelha-se mais a uma engenhosa construção literária de alguma mente brilhante, no entanto, o autor faz questão de ressaltar: “A ficção, aqui, se refere apenas aos nomes dos envolvidos. A história é real”. O livro, embora envolto numa roupagem romanesca e “mística”, é um relato histórico sobre a comunidade religiosa evangélica do seringal Lavras, encravada no meio da selva amazônica, no Rio Tauari, município de Tarauacá, que, em 1998, no extremo de seu fanatismo religioso, provocou o espancamento coletivo de seus membros e o massacre de seis pessoas, entre elas duas crianças, de modo brutal. Talvez por isso o livro seja tão impactante, pois é humano, demasiado humano, nos valendo de uma metáfora nietzschiana.
A história do seringal Lavras e seu triste episódio estão contados, com maestria, em sete capítulos. Sete que nos lembra o ‘até setenta vezes sete’, isto é, sempre, de Jesus dirigido a Pedro, quando este o indagou quantas vezes era necessário perdoar. Diniz (re)contou a história não para mostrar, em si, os horrores de um massacre praticado em nome de Deus, mas para mostrar como uma sociedade alicerçada na injustiça social produz os seus próprios “monstros”, para depois, hipocritamente, execrá-los em praça pública. Não que os crimes praticados por eles tenham justificativa. Com seu relato Diniz, certo modo, devolveu a dignidade àqueles homens e mulheres que até então eram os “monstros” do Tauari.
Eu não imaginava – ressalta o autor – que estava trilhando um caminho sem volta, quando decidi escrever a história brutal e triste dos matadores de Lavras. É esse caminho, no entanto, que nos faz perceber que sabemos muito pouco do ser humano na sua imprevisibilidade e profundidade, apesar de toda a pretensão da ciência. No fundo, o ser humano permanece esse ser de mistério envolto num Mistério maior, porque “Deus será, sempre, uma obra imortal, preciosa e inacabada, na alma incompleta e insatisfeita dos homens mortais”. A narrativa de Diniz, como ressaltara a conceituada e competente professora Luísa Lessa, nas páginas iniciais de “O Santo de Deus”, nos faz compreender como o ser humano é frágil produto do meio físico-social, podendo, a qualquer instante, ser arrebatado por ele, elevando-se ao Céu ou ao mais sombrio recanto da natureza animal. Ela prossegue: “O Santo de Deus conta a história da irracionalidade humana, do absurdo, da insensatez de pessoas que vivem isoladas, tendo como janela a religião, que ao tempo em que ampara, também conduz a condutas cegas...”.
O livro, como já se ressaltara, é um relato histórico. Porém, o autor, ao redor do tema, construiu diálogos e outras narrativas de grande valor literário que corroboram para a compreensão da obra como um todo. O capítulo inicial, “A versão dos deuses”, é um bom exemplo nesse sentido. Aí o leitor se depara com um diálogo ficcional que quebra o engessamento que costuma caracterizar muitas narrativas desse gênero, e abre a discussão em torno do massacre a partir da versão dos deuses. Diz-se que a cúpula celeste reunida decide enviar o anjo Gabriel para “perscrutar os corações e imprimir a verdade dos céus”. O intuito é apurar a verdade para que a plebe mortal não crie versões do fato que atinjam a castidade dos deuses, isto é, os responsabilizem por tal ato. Por sua vez, os Infernos também protestam e decidem enviar o seu anjo, Aquitofel, para apurar que a plebe mortal também não culpe “os demônios pelo massacre dos inocentes”. O propósito de ambos é salvar, respectivamente, os seus reinos de vida e de morte.
Os anjos então estabelecem um diálogo em torno do massacre. Gabriel pergunta a Aquitofel que consideração ele faz em relação à morte brutal e sem dor daqueles mendigos. Teu sacrossanto reino de luz e tua igreja abandonaram aqueles inocentes, é o que Gabriel recebe como resposta. Este contra-argumenta indagando se ele quer culpar os céus e os anjos por tal ato. Por sua vez, Aquitofel diz: “Culpo os teus ensinamentos e a maldade dos céus em abençoar a miséria em que padeciam aqueles inocentes”. Gabriel se isenta dizendo que nenhum anjo pegou na estaca que fez sangrar os inocentes e que não são os deuses os responsáveis direto pelas misérias humanas. Porém, Aquitofel contra-ataca dizendo que todos nasceram do ventre humano.
Do embate, entre os anjos, nasce uma conversa de esclarecimento. Aquitofel quer saber o que pensam os céus sobre a morte dos seis inocentes daquele seringal. “Foi a dura ausência nos lares de pão e do alfabeto”. Não satisfeito com a resposta Aquitofel argumenta que na cidade há também outros como aqueles do seringal, mas nem por isso sacrificam o corpo de seus filhos inocentes. É que lá – diz Gabriel – há homens dispostos a ocupar a mente com o segredo dos céus, como se substituísse a carência do pão e do alfabeto. Numa última cartada, Aquitofel pergunta onde nasce e morre a corrupção dos filhos do sol. “Nasce na concentração da riqueza e morre na sua repartição”. Por fim, Gabriel ressalta que os inocentes da terra morreram porque seus carrascos, com medo do reino das sombras, almejavam para os seus filhos o reino dos céus. E quando Aquitofel pergunta qual será o castigo dos assassinos, Gabriel responde que bastam as celas fétidas do mundo dos homens mortais.
Na sequência desse diálogo crítico e que serve como pano de fundo para toda a obra, o autor começa a dissecar personagens e fatos desse humano e brutal episódio. Porém, não almejo me deter, aqui, na descrição desses acontecimentos, quero antes suscitar o leitor para que vá direto à fonte e, aí, sacie-se a vontade. O livro é fruto de acurada pesquisa e do contato direto de Diniz com os condenados e sobreviventes do massacre. O autor, como ressaltara Luísa Lessa, encanta o leitor não apenas pela erudição que demonstra no correr da obra, pelo conhecimento religioso, conhecimento do mundo, da psicologia humana, da alma humana, senão, também, seduz pelo modo sábio como conduz a narrativa, que envolve o majestoso cenário amazônico e todos os mistérios ali presentes. Aliás, essa é uma característica sempre presente na prosa de Diniz. Portanto não se trata de um relato seco, áspero. Tem a candura das águas de um igarapé e, às vezes, o canto horripilante de uma suindara.
O massacre de Lavras, nos valendo das palavras do autor, é a história triste e inacreditável de um grupo de famílias camponesas que, acreditando fazer a vontade de Deus, assassinou os seus parentes, suas mulheres e os seus filhos. Lavras, na sua insofismável pureza e brutalidade, revela o homem que a nossa civilização abandonou. Pobreza e ignorância fizeram brotar o mais ingênuo e bestial fanatismo. Para Diniz, essa é a insofismável e dolorosa lição do Massacre de Lavras.
Às vezes entende-se que o autor quer, a todo custo, inocentar os responsáveis pelo massacre e para isso tece um acurado jogo de conhecimento amparado nas ciências humanas e, sobretudo, na teologia. No fundo, o que ele quer demonstrar é que tal acontecimento não diz respeito apenas ao grupo circunscrito, quando, sabe-se, na verdade, é fruto de uma ardilosa teia de injustiças sociais, que passa pela negligência das religiões e culmina na ausência dos governos: “E, ainda, queremos condenar pobres mendigos do alfabeto, condenados pela civilização, quando no episódio de Lavras, interpretaram, ao pé da letra, os ensinamentos bíblicos”. Como poderia, então, o povo de Lavras, atrasado e fanático, indaga Diniz, ter o discernimento de que os fatos bíblicos deveriam ser entendidos na sua temporalidade geográfica e cultural? O autor chega à incômoda e áspera verdade de que o povo de Lavras, de forma ingênua e macabra, nada mais fez do que a "vontade de Deus", expressa nas páginas amarelas do Antigo Testamento.
Não é preciso concordar com o Moisés Diniz, mas é preciso escutá-lo. Seu livro tem uma força humanizadora muito forte, e ninguém deve emergir daquelas páginas com o mesmo sentimento que entrou, senão, com aquele anseio de “urgente necessidade de fraternidade universal”. Mais que um livro para deleite literário, é um livro que educa para ser humano.
Infelizmente, no Brasil, a literatura ainda é muito circunscrita aos grandes centros urbanos, o que leva a marginalização das “literaturas” feita Brasil afora, que, raramente, conseguem quebrar as cadeias dessa ditadura mercadológica e desleal. A meu ver, Diniz escreveu uma obra-prima. Caso sua obra tivesse sido publicada por uma grande editora ou mesmo chegado ao grande público, ele hoje seria um autor festejado a nível nacional e estaria colecionando os mais diversos prêmios. É um otimismo exagerado, poderá alguns pensar. Porém, no meu último otimismo fiz a sugestão de que Diniz seria um bom nome para a Academia Acreana de Letras, e alguns dias depois, grata surpresa, lá estava ele entre os novos imortais.
No início deste texto, abordou-se, vagamente, as ideias do filósofo Richard Rorty em relação a contribuição da literatura para a percepção de casos de crueldade. Para ele, deve-se, a todo custo, evitar a crueldade, o sofrimento alheio. Para exemplificar como a literatura, em alguns momentos, auxiliou na percepção de casos de crueldade, Rorty cita os romancistas George Orwell e Vladimir Nabokov, em seus, respectivos, romances “1984” e “Lolita”. Rorty acentua que tanto Orwell quanto Nabokov, o que fizeram foi sensibilizar uma plateia para os casos de crueldade e humilhação que ela não havia notado. Eis o grande mérito da obra de Moisés Diniz, e é por isso que ela precisa ser conhecida. Se ouvirmos atentos, daquelas páginas ecoam um grito de esperança, caso este seja ignorado, poderá se tornar em mais um grito de dor.
Moisés Diniz, por fim, acentua que Lavras se ramificou em seu sangue e não o deixou que escrevesse um livro, mas digitasse a dor daquele povo, anotasse as suas lamentações mendicantes e registrasse seus ossos na pedra em que se transformou o coração dos homens urbanos, com a sua insensibilidade, sabedoria nula e cobiça infame. “O Santo de Deus” continuará a ser um livro impactante, que faz nosso coração tremer, ora incrédulo, ora fascinado, ora horrorizado. Mexe conosco porque, no fundo, é o drama de todos nós.