Se no mundo inteiro 2020 mostrou a importância do jornalismo para a democracia, no Brasil o ano foi marcado pela violência contra os jornalistas no exercício da profissão. O ano mais violento desde 1990, quando se deu início aos levantamentos. Foram 428 casos de violência, 105,77% a mais que o já alarmante número de 208 ocorrências registradas em 2019.
Os dados integram o relatório “Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil – 2020”, da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), e foram divulgados nesta terça-feira, 26. Os números apresentados foram coletados por meio das denúncias apresentadas à Federação e Sindicatos de Jornalistas, além da análise das notícias publicadas pelos veículos de comunicação.
“Portanto, temos a clareza de que esses números são subestimados. Há uma cultura muito forte, nas empresas jornalísticas, de não falar sobre violência contra os seus próprios trabalhadores, acrescentando que a categoria censura se dá, sobretudo, pelas chefias nas próprias empresas. Muitos jornalistas que são vítimas sequer registram boletins de ocorrência e tornam públicas as situações”, afirma a segunda vice-presidente da Fenaj, Samira de Castro, do Ceará.
Atrelada à chegada de Jair Bolsonaro (sem partido) à Presidência da República, as violações contra a liberdade de imprensa e ao exercício profissional do jornalismo no Brasil tem sido uma prática sistemática desde 2019. Neste ano, se comparado aos ataques sofridos pelos profissionais no ano anterior, houve um crescimento de 54,07%. Foram 208 contra 135 ocorrências registradas em 2018.
“Essa escalada se deu, sobretudo, com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República, em 2019. O presidente, seus filhos, membros de seu governo e seus eleitores fiéis praticam sistematicamente ataques a jornalistas e a veículos de mídia, numa tentativa deliberada de descredibilizar o trabalho da Imprensa como instituição” - Samira de Castro, vice-presidente da Fenaj
Em 2020, em meio a uma pandemia sem precedentes na história recente, as agressões aos jornalistas e à liberdade de imprensa foram agravadas. Num país que enfrenta o avanço da covid-19 sem uma coordenação nacional do governo federal, com um chefe de Estado que nega a ciência, não estabelece uma logística nem relações diplomáticas que favoreçam a vacinação como um direito universal à defesa da vida, o jornalismo foi escolhido como um inimigo a ser combatido.
Segundo o relatório da Fenaj, o presidente Jair Bolsonaro foi o principal agressor:
“Sozinho foi responsável por 175 casos (40,89% do total): 145 ataques genéricos e generalizados a veículos de comunicação e a jornalistas, 26 casos de agressões verbais, um caso de ameaça direta a jornalistas, uma ameaça à TV Globo e dois ataques à Fenaj”.
Casos de censura aumentam 750%
Apesar de não ter registrado aumento do número de assassinatos em relação a 2019, dois jornalistas foram mortos este ano: Léo Veras, em Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia, onde o jornalista mantinha o site Porã News, e Edney Antunes, na cidade de Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso, onde atuava como assessor.
Houve um aumento de 750% de casos de censura e de 280% de agressões verbais e ataques virtuais em comparação ao ano de 2019. Em números, a violência contra jornalistas registrou dois assassinatos, 32 casos de agressões físicas, 76 ocorrências de agressões verbais e ataques virtuais, 34 ameaças e intimidações, 6 ataques cibernéticos, 1 atentado, 85 casos de censura, 16 registros de cerceamentos à liberdade de expressão por meio de ações judiciais, 152 episódios de descredibilização da imprensa, 14 impedimentos ao exercício profissional, 2 casos de injúrias raciais, 2 registros de sequestro/cárcere provado e seis episódios de violência contra a organização dos trabalhadores.
“Com grande preocupação, a Federação alerta para o crescimento significativo do número de ocorrências, em relação ao ano anterior. Esse crescimento evidencia a institucionalização do desrespeito ao princípio constitucional da liberdade de imprensa, por meio da Presidência da República, e a disseminação de uma cultura da violência para a relação cidadãos/veículos de comunicação/jornalistas”, avalia a direção da Fenaj.
A Região Nordeste é uma das que registra os menores números, com 19 ocorrências, atrás apenas da Região Norte, que contabiliza 15 casos. O Rio Grande do Norte é o estado mais seguro do Nordeste para a categoria, com apenas um caso de violência registrado: a agressão do delegado Sérgio Leocádio, então candidato a prefeitura de Natal pelo PSL, à equipe de reportagem do jornal Tribuna do Norte.
Ao notar que estava sendo filmado, o candidato empurrou o repórter Ícaro Carvalho, agarrou o celular do jornalista, disse que não falaria com a imprensa e fez acusações relacionadas a favorecimento de outros candidatos. O repórter fotográfico Magnus Nascimento levou um soco nas costelas de um dos seguranças de Leocádio e ainda teve a máscara de proteção contra a covid-19 arrancada.
Embora não apareça no relatório, a agressão de Leocádio não foi a única violência contra jornalistas em 2020 na capital potiguar. Em março, durante uma manifestação pro-Bolsonaro, os repórteres Yuno Silva (Tribuna do Norte) e Ranílson Oliveira (TV Tropical) também foram vítimas de agressões de simpatizantes do presidente.
Já o Ceará continuou sendo o mais violento, com sete casos. Na Bahia, Paraíba e Pernambuco houve três ocorrências em cada. No Piauí, foram dois casos.
Para Samira de Castro, chama atenção o fato de o Ceará estar, por anos, liderando esse triste ranking regional. Ela lembra que em 2019, quando o Nordeste teve 11,70% dos casos, era a penúltima região menos violenta. Uma posição regional que se manteve em 2020, segundo Samira “muito em função de dois tipos de violência que foram creditadas à região Centro-Oeste, especificamente no DF: os ataques do presidente Bolsonaro, uma vez que suas lives e pronunciamentos oficiais acontecem em Brasília, e os casos de censura na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), cuja sede fica em Brasília”.
Em relação ao caso da agressão física registrado em Natal, capital do Rio Grande do Norte, a dirigente da FENAJ afirma que “ilustra bem o quanto os partidários da extrema-diteita agem para tentar impedir o livre exercício profissional do jornalismo no Brasil e, por consequência, o direito à informação da população.Veja que a equipe foi agredida por um candidato a prefeito do PSL, partido que elegeu Bolsonaro. Note que, no relatório geral, após o presidente e servidores públicos/dirigentes da EBC, a terceira maior categoria de agressores são os políticos”.
O Centro-Oeste foi a região brasileira com maior número de violações à liberdade de imprensa, com 134 registros. O Sudeste, com 78, mantém-se como a região em que mais ocorreram casos de violência direta contra jornalistas, seguindo uma tendência registrada nos últimos sete anos.
No Sul do país, foram 30 casos de agressões aos profissionais jornalistas, estando o Paraná como estado com maior número de ocorrências, 15.
Violência por gênero
A prevalência desde o início da série histórica dos levantamentos da FENAJ das vítimas de violência do sexo masculino foi mantida em 2020. Eles representam 65,34% do total de 248 ocorrências, ou seja, 147. Já as mulheres correspondem a 28, o equivalente a 44% (64) das vítimas. Em 14 casos (6,22%) os profissionais não foram identificados ou a violência foi contra equipes.
Violência por tipo de mídia
Os profissionais que trabalham em TVs foram os que mais sofreram agressões. São 77 casos, o que corresponde a 24,44% do total. Chama atenção, ainda, a segunda posição ser ocupada pelos jornalistas que trabalham na Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Segundo a FENAJ, eles foram identificados separadamente por “aglutinar vários veículos de comunicação (TV, rádio, site e agência de notícias)”. Foram 76 casos de violências contra os trabalhadores da empresa, ou seja, 24,13% do total.
Os registros são seguidos pela mídia digital, 61 casos (19,37%), jornal, 54 (147,14%), rádio, 12 (3,81%), assessoria de imprensa, 6 (1,91%), agências, freelancer, revista, cada uma 3 (0,95%), e livro e universidade, cada com 1 (0,32%) e mídia não identificada, 18 (5,71%).
Agressores
Entre os agressores, destaque para o presidente Jair Bolsonaro, responsável por 175 casos, o que representa 40, 89% do total. Servidores públicos, incluindo a direção da EBC, políticos, internautas, populares, juízes, procuradores, promotores, manifestantes, policiais militares e civis, empresários da comunicação, dirigentes de clubes de futebol e torcedores, hackers, empresários, seguranças, jornalistas, profissional liberal, motorista, religioso e traficante compõem a lista de agressores.