Tive a antevisão dessa ofensiva tempos atrás, no início dos anos 2000, quando assisti os mauricinhos abandonarem suas trincheiras na Vila Olímpia, bairro coxinha por excelência, e invadirem a Vila Madalena, tradicional bairro boêmio e alternativo de São Paulo. Naquele momento, pressenti e temi que algum dia eles quisessem ir além e decidissem tomar o poder. A ideia de uma revolução mauricinha me deu calafrios. Pronunciei mentalmente um “no pasarán” apaziguador e fui afogar as mágoas tomando umas cervejas no Empanadas. Mais de dez anos depois, porém, para meu desgosto, a profecia se cumpriu.
Mauricinhos, playbas, coxinhas. Chamem-nos como quiserem: trata-se do mesmo personagem de corte de cabelo impecável e com uma preferência indesculpável pelo mocassim. Hugo Chávez os chamava “esquálidos”. Na Argentina e Uruguai, são apelidados “chetos”. No Chile os chamam “cuicos”. Em comum, em primeiro lugar, o fato de serem homens jovens, brancos e bem-nascidos, uma espécie de versão sul-americana dos WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant). Nem tão brancos, portanto, e católicos. Para quem acha que foi o PT quem inventou a luta de classes, não deixa de ser curioso observar que a disputa entre a esquerda e os filhos da elite política, econômica e midiática é, na verdade, uma tendência no continente.
O figurino coxinha pode até ser emulado por wannabes de várias classes sociais, mas só o legítimo mauricinho tem berço: descende de famílias poderosas há gerações e trilha o mais atapetado dos caminhos para chegar lá. Boas escolas, boas relações, bons empregos –sobretudo no aconchego das empresas da família. Self-made men são raríssimos no seleto clube dos maurícios, onde o sobrenome é tão imprescindível quanto as camisetas gola pólo ou as camisas de algodão azul clarinho no guarda-roupa. O mais gozado disso tudo é que, com uma vida tão facilitada pela família, todos eles adoram defender a “meritocracia”.
Graças ao apoio ostensivo da mídia, os mauricinhos vêm se tornando, nos últimos anos, os principais rivais dos governos de esquerda na América do Sul. Eles são a antítese dos ditos “bolivarianos” em tudo. Falam inglês, ao contrário de Lula; estudaram nos melhores colégios, em contraste com a falta de polidez de Chávez ou Nicolás Maduro; se vestem de maneira elegante, em contraponto ao estilo mal-ajambrado de Pepe Mujica ou Dilma Rousseff; e são jovens contra coroas de esquerda como Mujica, Dilma, Lula ou Tabaré Vázquez.
O precursor dos playbas anti-bolivarianos foi, sem dúvida, Henrique Capriles, na Venezuela. Herdeiro de empresas de comunicação, imobiliárias e indústrias por parte de pai, e de uma cadeia de cinemas por parte de mãe, o advogado Capriles, de 42 anos, elegeu-se deputado pela primeira vez aos 26, em 1998. Em 2013, deu muito trabalho a Chávez na disputa pela presidência e mais ainda a Nicolás Maduro, que substituiu o comandante em nova eleição após a morte deste.
Apesar de ter perdido o pleito por uma diferença de pouco mais de um ponto percentual, Capriles só não se tornou o grande nome da oposição venezuelana porque passou a travar uma disputa, digamos, mauricida com um companheiro da própria MUD (Mesa da Unidade Democrática), Leopoldo López. Aos 43 anos, López é descendente do primeiro presidente da Venezuela, de ministros, médicos famosos, e, garante, do próprio Simón Bolívar (Capriles, aliás, diz o mesmo). Sua mãe foi uma importante diretora da PDVSA antes da estatização promovida por Chávez. Formou-se em economia nos Estados Unidos e, aos 29 anos, tornou-se prefeito de Chacao, um dos municípios que formam a área metropolitana de Caracas.
No Brasil, confesso que cheguei a temer que o rei dos coxinhas em pessoa, Luciano Huck, resolvesse se candidatar à presidência ou a vice de algum candidato este ano. Mas quem se lançou foi seu amigo Aécio Neves, do PSDB, com perfil em tudo similar ao dos venezuelanos. Neto de Tancredo Neves, Aécio conseguiu cargos públicos ainda bastante jovem e sem maior esforço. Foi diretor de loterias da Caixa Econômica aos 25 anos, nomeado pelo presidente José Sarney, e em seguida se elegeu deputado federal com uma votação esmagadora, alavancado pelo sobrenome de peso.
Aécio pode ser considerado um pioneiro do movimento mauricista, porque é mais velho do que seus congêneres sul-americanos: todos eles em geral estão entrando nos 40 anos, enquanto o mineiro tem 54, conservadíssimos pelo estilo de vida jovial de quem passou boa parte da vida na zona sul do Rio de Janeiro. No entanto, é inegável que o grande patrono do fenômeno dos maurícios entre nós é o hoje senador da base governista (!) Fernando Collor de Mello.
Eleito para a presidência da República em 1989, aos 40 anos, Collor exibiu todas as características de um mauricinho no poder. Bons restaurantes, bons vinhos, carros velozes, jet-skis e até marcas de caneta (Montblanc) e relógio (Breitling) viraram símbolo de sua era. Na economia, cercou-se de jovens como ele, economistas liberais capitaneados por Zélia Cardoso de Mello, de 37 anos –a equipe que iria tungar a poupança dos brasileiros em 1990. Seu governo, sem apoio no Congresso, terminaria em impeachment.
Aécio, como todos os demais mauricinhos anti-bolivarianos, não assume o neoliberalismo do pensamento econômico tucano e se diz preocupado também com o social. Depois de uma disputa voto a voto com Dilma Rousseff, do PT, pode-se dizer sem chance de errar que o neto de Tancredo se tornou o maior expoente do mauricismo pátrio –não à toa, tem a seu lado nomes de peso da tendência, como o já citado Huck, o baiano ACM Neto ou Ronaldo, o Fenômeno. Mas será que a mauricidade de Aécio resiste até 2018, quando terá 58 anos e a cabeça toda branca? Ou será substituído por um maurício mais jovem, como… Huck? Argh.
Atualmente, a novidade mais quente entre os mauricinhos da política do Cone Sul é o uruguaio Lacalle Pou, que irá enfrentar o esquerdista Tabaré Vázquez no próximo dia 30 de novembro, no segundo turno das eleições para a presidência do Uruguai. O advogado de 41 anos é tão bem-nascido que tem até nome de nobre: Luis Alberto Aparicio Alejandro Lacalle Pou de Herrera. Um verdadeiro príncipe. Seu pai, Luis Alberto Lacalle, foi presidente do país entre 1990 e 1995, e foi derrotado por Tabaré em sua tentativa de voltar ao cargo, em 1999. Em 2009, se lançou à presidência novamente e perdeu para Mujica.
Lacalle Pou estudou na British School, a mais seleta escola de Montevidéu, e, como todos os mauricinhos anti-bolivarianos, entrou cedo na política, com o empurrãozinho do sobrenome paterno e também materno, de longa tradição entre os “blancos” (Partido Nacional). Aos 27 anos, em 2000, se elegeu deputado. Agora, se tornou a grande surpresa da eleição ao levar a disputa no país para o segundo turno. A mãe do candidato, Julita Pou, também foi senadora, e, segundo diz a imprensa uruguaia, é a grande financiadora da campanha do filho, o que ele nega.
Em agosto, o candidato causou polêmica ao “desafiar” Tabaré, de 74 anos, a repetir uma estripulia física chamada “bandeira” com um poste, o que lhe rendeu o apelido de “Lacalle Pole” e muita gozação na internet, além de críticas por zombar do adversário por ser “velho”.
O pai de Lacalle Pou foi um presidente em cujo governo se acentuou a desigualdade social no Uruguai e que se notabilizou pela privatização de empresas e pelas denúncias de corrupção. Lacallito rejeita para si o epíteto de neoliberal ou de “Chicago Boy” (os economistas responsáveis pelo “milagre” chileno durante a ditadura de Pinochet que anteciparam o neoliberalismo). Pelo contrário, elogia as conquistas da Frente Ampla de Mujica e Tabaré e diz que irá mantê-las. Quem nunca viu este filme antes?
Se ganhar a eleição, Lacalle Pou será o primeiro dos mauricinhos anti-bolivarianos a conseguir derrotar um esquerdista e chegar ao poder. Felizmente, ao contrário do que fez Chávez na Venezuela, são remotas as chances de, eleito, mudar o nome do país para República Maurícia do Uruguai –ou República “Cheta” do Uruguai. Pelo sim, pelo não, melhor preparar a camiseta pólo e o mocassim para a posse.