Fiz todo esse relato, Lia, para te dizer que escapaste por um fio. Um fio de sangue, uréia, de gânglios, água, de cordão umbilical. Eu e tua mãe decidimos te executar! Cadeira elétrica, veneno, enforcamento, arma branca ou de fogo, afogamento, asfixia ou crucificação. Nenhum desses suplícios estava ao alcance de nossas mãos. Apesar de indefesa, Lia, essas poderosas formas de execução não tinham a capacidade de te destruir. Nenhuma armadura ou colete te protegia, apenas uma pele amorosa e elástica, o útero, envolvendo o líquido amniótico. Foi assim que descobrimos o quanto tu és forte. Restou-nos o Cytotec*.
Todavia, Lia, preciso te confessar as angústias que controlavam meus impulsos quando da decisão de te executar. Sei que lançarei palavras ao vento, pois não há defesa para a tentativa de execução. O mais grave, Lia, é que tu não tinhas como te defender. Sequer podias chorar, pois o ar de teus minúsculos pulmões era água, sangue e uréia. Nenhuma corrente de ar veio em teu socorro para transportar a tua voz gutural. Teus braços ainda estavam pregados ao teu corpo, teus pés não eram nômades e tuas mãos não manuseavam uma única letra do alfabeto. Como escrever e enviar uma carta ao Papa ou à consciência de teu pai pedindo auxílio? Os carteiros estavam em greve, lutando também pela vida!
Lia, eu acreditei na pureza ancestral da humanidade. Sonhei que os proscritos conquistariam o pão, o abrigo e o alfabeto. Lutei como um leão, às vezes avestruz, um lobo. Filas mortas, famintas e trágicas fizeram abortar o meu sonho. O dinheiro da elite e os impostos do cidadão foram o Cytotec que me fez amargar a derrota. Os proscritos continuarão em fila sob os pés dos donos da terra. Um desânimo bruto ocupou o meu tempo e a minha alma. Minha conta bancária esvaziou-se como uma adega. Tentei beber outras águas para aplacar a minha sede. Vieram doces e se tornaram amargas! Foi nesse tempo, de angústias ainda secretas e inomináveis, que tu foste gerada, como uma flor soberba que nasce nos pântanos.
Eu jamais podia imaginar o teu pequenino sorriso, tua pele frágil, tuas mãos miúdas, menores que as mãos de um macaco-prego, teu soluço clamando um mamilo lácteo e tua fragilidade que encanta. Não tive a capacidade de vislumbrar essas imagens! Saber que tuas mãos, teus olhos, tua pele e teus rins, em miniatura, estavam lá, desafiando a temperatura do líquido amniótico. Sequer lancei o olhar para a gigantesca guerra que cada homem trava para não morrer. Se olhares bem, Lia, verás que cada movimento dos homens e dos animais inferiores vai nessa direção. Somente eu não consegui ver o óbvio!
Moisés Diniz é Escritor e Deputado Estadual pelo PCdoB do Acre