Em busca da alma perdida


Moisés Diniz *



Há 23 anos eu me filei ao Partido Comunista. Junto comigo faziam a mesma opção os deputados Edvaldo Magalhães (PCdoB), Perpétua Almeida (PCdoB) e Henrique Afonso (PT), além do atual vice-prefeito de Mâncio Lima, Eriton Maia (PCdoB). Uma característica nos unia: a origem religiosa. Éramos egressos de congregações da Igreja Católica, Maristas, Dominicanas, Diocesanos.



Nossa origem produziu algo novo na relação política tradicional e extraordinário nas fileiras do Partido Comunista. Começou a nascer, lá pelas bandas do Tarauacá e do Juruá, um jeito diferente de organizar comunistas. A linguagem ácida da revolução cedia espaço para o jeito carinhoso da Igreja. O perdão que aprendêramos a praticar na Igreja tornava-se a tolerância política na relação cotidiana com os aliados, os adversários e com as idéias adversas.



Esse largo tempo não me tornou xiita na relação política e nem me fez intolerante no debate de idéias. Agora ando meio desiludido, confesso, com essa visão ampla e achando que fui tolo por mais de duas décadas. Os ataques criminosos de Israel à Faixa de Gaza estão meio que matando meu humanismo e me tornando assim como se a intolerância me seguisse sem que eu a visse.



As fotos, que circulam na internet, de crianças palestinas cobertas de sangue, despedaçadas e mortas estão me chocando profundamente. Nunca me senti assim, tão impotente. Eu, que não consigo estancar a dor nos hospitais acreanos, garantir escola para todas as crianças nos altos rios e dizimar todas as mazelas sociais, o que poderia fazer para salvar aquelas crianças?



Vindo de uma família pobre da Amazônia e da Congregação dos Irmãos Maristas, eu chegava às fileiras comunistas com uma razoável memória humanista e arraigadas concepções idealistas. Isso me ajudou muito a exercitar algo novo na tradição do Partido Comunista: agir na política a partir de uma visão ampla de mundo e tolerante com as idéias que combatiam as minhas.



Um primeiro resultado disso foi a entrada de dezenas de religiosos nas fileiras do Partido Comunista em Tarauacá, depois se expandindo para as demais regiões do Acre. A nossa memória humanista levou a nos aproximarmos de setores que não constavam nos manuais leninistas: os pobres mais pobres das periferias, chamados de ‘Lúmpen (o homem trapo)’, os extrativistas e os povos indígenas.



Na minha cidade não havia operariado. A revolução estava, assim, sem uma de suas principais ferramentas. Organizar os mais pobres e juntar-se a eles na tentativa de construir consciência coletiva era um ‘ato de fé’ que levávamos a sério. Essa visão meio heterogênea de mundo, misturando concepções idealistas e dialéticas, fez a gente construir um partido mais ou menos de todo o povo.



A idéia de um partido de massas foi sendo construída sem que percebêssemos que entre as massas havia gente de todo tipo. Isso levou a existência real de um partido que se constituía de brasileiros com as suas virtudes e as suas vilezas. O capitalismo havia deformado os homens que entravam no Partido Comunista.



E não havia outros homens e outras mulheres. Aqueles brasileiros imperfeitos eram os nossos militantes. É que a revolução de que falávamos não aconteceria nos céus dourados onde vivem os anjos. Assim fomos construindo um partido verdadeiramente de novo tipo, cercado de todas as virtudes e de todas as misérias humanas.



Outro efeito daquela herança foi a nossa aproximação com os setores dominantes do mundo da economia. Alguns empresários foram se constituindo em aliados e alguns até se tornaram militantes. Isso consolidou de vez a idéia de que a luta de classes podia estabelecer regras entre os combatentes.



Como em uma guerra convencional era possível definir regras que orientassem o combate que se estenderia por décadas. Assim, a violência da luta de classes sofreria um dano irreparável e as partes buscariam novas formas, mais distantes da barbárie, de encontrar o caminho da vitória.



Quanta ilusão! A alma humana se perverte como um porco na lama da crueldade e da vileza. Centenas de crianças palestinas estão sendo barbarizadas e ainda tem seres humanos concordando com a matança. Argumentam que existem terroristas entre elas. Dizem que Israel está apenas reagindo.



Uma pesquisa de opinião aponta que 40% dos brasileiros concordam com as ações de Israel e apenas 50% condenam o seu terrorismo de estado. Em recente artigo que escrevi condenando a agressão israelense, dezenas de acreanos afirmaram que eu devia primeiro cuidar dos problemas do Acre e deixar de proselitismo.



A minha solidariedade foi condenada junto com a minha ‘fraca’ atuação parlamentar. Disseram que um deputado medíocre como eu não tinha o direito de ser solidário com os palestinos assassinados e suas famílias. Eu só podia externar minha solidariedade depois que não existisse mais nenhuma desigualdade social no Acre.



A televisão mostrava aquelas crianças palestinas mortas e cobertas de sangue e do outro lado do muro surgiam rabinos e empresários israelenses dizendo que estavam sofrendo pressão emocional devido os mísseis disparados pelo Hamas. A mídia ocidental equiparava crianças palestinas mortas a adultos israelenses com problemas emocionais.



Na matemática do ocidente havia desaparecido a diferença entre a morte e o estresse. O sangue palestino jorrando se tornara igual ao estresse emocional dos israelenses da fronteira. Assim fui descobrindo que nenhum argumento convenceria essas pessoas. Elas não distinguiam mais os sinais que fizeram da humanidade uma espécie rara e próxima dos anjos.



Qualquer palavra servia para esconder uma alma putrefata que nascera nos subúrbios da dignidade e da decência. Para essas pessoas valia construir todo tipo de argumento, pois o que estava em jogo era a essência de suas vidas partidas e inutilizadas pela vileza da ideologia. Elas sabiam, mas não reconheciam, que os palestinos estão sendo covardemente eliminados. Elas sabiam que Israel comete crime contra a humanidade, reconhecido até por cardeais da combalida ONU.



Todavia, o que está em jogo é uma concepção que acompanha a humanidade desde os seus primórdios. Aqueles que querem uma sociedade como a atual vão continuar defendendo a carnificina cometida por Israel. E não adianta a gente argumentar dados históricos, políticos ou éticos. Isso não significa nada para quem já ultrapassou todos os limites da decência e da dignidade humana.



Essas pessoas esquecem que a humanidade resiste há pelo menos dois milhões de anos, desde aquele instante mágico em que ela ousou controlar os elementos naturais poderosos. Ali nascia o homem e a sua vontade de viver em paz com os entes naturais e com os seus semelhantes.



Mesmo que a cobiça humana tenha arrebentado a terra e a sua ‘gente inteligente’, o homem não desistiu de sonhar. Desde os primórdios, passando pelas eras difíceis e instáveis da barbárie, o homem nunca abandonou a crença na fraternidade humana. Das cavernas rústicas e desconfortáveis às modernas e aprazíveis moradias, a humanidade sempre acreditou na possibilidade do diálogo e da convivência pacífica entre os povos.



Isso faz o Hamas tornar-se um grupo desprezível. Mas leva também à condenação sem tréguas da política criminosa de Israel. Nesses últimos dias o ódio humano é o sentimento mais forte entre os homens da terra. Isso é terrível e lastimável. Israel não tinha o direito de fertilizar com o sangue palestino o pior e o mais desprezível de todos os sentimentos humanos.



Assim eu passo a me questionar se não perdi 23 anos. Será que não errei quando fui amplo e defendi arduamente o direito ao contraditório? Será que não é melhor radicalizar nos meus pontos de vista e atropelar o ponto de vista adverso? Será que não estamos ingenuamente acreditando que é possível domar os lobos?



Por que não percebemos que grupos como o Hamas surgem a partir de pequenas atitudes de desrespeito ao próximo, de preconceitos ‘inocentes’ e da intolerância política, ideológica, religiosa? Israel, por seu lado, nasceu nos mesmos pântanos que fizeram parte da humanidade tornar-se pior do que os demônios que a atormentam.



O que faz um ser humano se tornar insensível frente à morte de crianças? Nunca imaginei que as ideologias fossem capazes de produzir tanta lama na alma humana. Meu medo é que, daqui a pouco, por causa de tanto ódio, alguns de nós passem a ter o mesmo sentimento quando crianças israelenses forem mortas.



É como se a brutalidade da morte não incomodasse mais. Algo está errado na consciência humana e não estamos conseguindo deter as suas manchas imemoriais. Será que ainda conseguiremos salvar nossa dignidade e a nossa ‘utopia’ de um mundo livre dessas perversões?



Nunca imaginei que o ódio fosse o ingrediente mais forte da espécie humana. É nesses instantes que eu tenho uma sadia inveja dos pássaros. Eles não se vestem para matar e nem pousam na lama para alvejar os olhos dos semelhantes.



Eu perdôo todos os ataques escritos e compreendo todas as críticas. Não contribuirei com uma única vírgula para o surgimento de grupos terroristas como o Hamas e nem para a constituição de estados criminosos como o de Israel.



É que descobri, com uma dor incontida na alma, que o Hamas e Israel estão dentro de nós, em pequenas porções. Cada palavra de ódio, cada preconceito, cada intolerância e cada sentimento vil funcionam como um espermatozóide, a fecundar um feto terrorista e criminoso no futuro, agora em guerra desigual na cobiçada terra santa.



É que cada um alimenta o seu animal a partir do tamanho da alma do seu próprio dono. Por isso eu vou seguir os pássaros na sua inocência e resistir na crença de que o homem pode voltar a ser anjo, livre das imundícies que lhe trouxe o capital.



* Deputado estadual do Acre e neto de índios ashaninkas
Raimundo Accioly

Cidadão comum da cidade de Tarauacá no Estado do Acre, funcionário público, militante do movimento social, Radio Jornalista, roqueiro e professor. Entre em Contato: accioly_ne@yahoo.com.br acciolygomes@bol.com.br 68-99775176

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