O fascismo não ficou no passado. Ele se manifesta quando pessoas comuns passam a tratar a violência como virtude política.
2025 está terminando. Mas, para mim, o mês de março segue em curso.
É um mês que não se encerrou no meu calendário porque deixou marcas que atravessaram o ano inteiro. Foi em março que uma reportagem que publiquei a partir da Argentina desencadeou uma campanha de ameaças de morte que transformou radicalmente minha vida.
Fui obrigado a mudar de casa, de estado e de rotina. Minha família e pessoas próximas passaram a viver sob medo permanente.
Até consegui me levantar depois disso. Publiquei dezenas de reportagens, análises e investigações aqui na newsletter Cartas Marcadas. Por sinal, quem quiser revisitar esse percurso pode encontrá-lo clicando aqui.
Esta última edição de 2025 até poderia ser uma retrospectiva de tudo isso o que foi publicado. Mas não é.
É uma tentativa de entender o que vi e vivi à luz de uma leitura que fiz agora em dezembro e que deu sentido, de forma dolorosa, a minha memória daquele mês de março.
Vamos aos fatos.
O gatilho do ódio: da reportagem ao cerco digital
Depois da reportagem em que revelei que o bolsonarista Josiel Gomes de Macedo, condenado a 16 anos de prisão por participação na tentativa de golpe de 8 de Janeiro, vivia tranquilamente na Argentina apesar de ter mandado de prisão aberto no Brasil, a reação foi imediata.
A investigação tratava da rede de proteção aos golpistas, da leniência das autoridades argentinas e do envolvimento direto de Jair Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro na fuga dos condenados por ataques à democracia. Isso bastou para que o ódio se organizasse.
Um retuíte de Eduardo Bolsonaro funcionou como gatilho. Emissoras de rádio, influenciadores, figuras públicas e políticos passaram a incitar ataques. O próprio Josiel, em uma live, fez ameaças explícitas.
Nas redes sociais, começaram a circular mensagens que iam muito além de xingamentos: promessas de assassinato, divulgação de endereços, informações pessoais minhas e da minha família, desejos de perseguição e violência física.
Investiguei cada uma daquelas ameaças. Foi aí que algo se tornou ainda mais perturbador. Por trás das mensagens mais brutais, não estavam apenas perfis anônimos ou militantes profissionais, mas gente comum.
Uma senhora do interior do Tocantins escreveu que eu merecia “um banho de água sanitária”. Um pai de três filhas, morador de Salvador, implorava para que alguém me matasse. Trabalhadores, aposentados, pessoas com vida ordinária, rotina banal, capazes de escrever atrocidades com uma naturalidade assustadora.
Precisei sair de casa às pressas, reorganizar tudo, tentar seguir trabalhando enquanto lidava com o medo permanente e com a angústia de ver minha família exposta.
E foi só agora, lendo um livro recém-lançado pela Companhia das Letras, chamado “O Tenente”, de Celso Furtado, que algo daquele período começou a fazer um sentido mais profundo.
Alerta aos acadêmicos e intelectuais: não farei aqui uma análise científica ou acadêmica. Não faltam autores, conceitos, escolas e bibliografias para analisar a violência política e o fascismo.
O fascismo por dentro: a visão de Celso Furtado
O que me atravessou na leitura de Furtado foi outra coisa: o testemunho cru de alguém que viu o fim do fascismo italiano por dentro, como soldado da Força Expedicionária Brasileira nos finalmentes da Segunda Guerra Mundial, circulando por cidades devastadas e convivendo com um povo moldado por décadas de arbítrio.
Ao chegar a Nápoles, Furtado descreve um dos impactos imediatos da guerra e dos fascismo sobre a população civil: “Quando o caminhão saiu da zona portuária, começou para mim o terrível espetáculo. Eu queria ver a cidade: sua fisionomia, o grau de prosperidade; queria ver o povo; queria ver a guerra: os seus efeitos na cidade e no povo”, diz.
“Entretanto, a única coisa que pude ver foi a tragédia horrível das crianças famintas que assaltaram o caminhão. (…) Os seus agasalhos em farrapos e os pés embrulhados em trapos. Tinham as mãozinhas para cima e gritavam, gritavam pedindo comida e cigarros. Atiravam-se no chão em busca do que deixávamos cair do caminhão”, descreve Furtado.
Mas o que mais impressiona em “O Tenente” não é apenas a fome ou a destruição material. É a descrição do que o fascismo fez com as pessoas comuns. “Nos era dado conversar e conviver com indivíduos que há um quarto de século não sabiam o que é a liberdade, mesmo nas suas formas mais elementares”, escreve Furtado.
“Nos foi dado ver como um sistema de arbítrio e a irresponsabilidade de governo costuma corromper um povo”, continua. “Acostumados a esperar de parte dos poderes constituídos o que fosse de mais atrabiliário [violento] e imoral, os indivíduos iam formando o seu comportamento de modo a compensar essa ordem de coisas com atos e atitudes também imorais”, resume.
A leitura dessas passagens em 2025 foi, para mim, desconcertante.
A normalização da violência como pertencimento
Percebi que o bolsonarismo, assim como o fascismo histórico, não se limita a um projeto de poder ou a uma ideologia organizada. Ele cumpre um papel corrosivo mais profundo: o de normalizar a violência, o cinismo, o ódio como forma de pertencimento político.
Furtado descreve como, sob o fascismo, instintos como o egoísmo, a falsidade e o medo se espalham pela sociedade, enquanto o senso de responsabilidade coletiva é anulado. “O estado fascista anulou-lhe o senso de responsabilidade no que diz respeito à coisa pública”, escreve.
Essa ausência de responsabilidade é o que fez, segundo a minha interpretação, pessoas comuns desejarem a morte de um jornalista, divulgarem endereços, celebrarem a violência como espetáculo.
Não há culpa, não há constrangimento. Apenas a convicção de estar do lado certo de uma guerra imaginária.
Furtado observa ainda como o fascismo vicia o povo na violência. “Viciado pelo fascismo no delírio, o povo continuava delirando de amor à passagem daqueles que eram seus inimigos. Viciado na violência, aplicava a violência contra seus antigos ídolos.” O denominador comum, escreve ele, era apenas o ódio: “A força primitiva que o fascismo desencadeia nas suas almas”.
É nesse ponto que a minha experiência pessoal e a leitura histórica se encontraram. Entendi que o bolsonarismo construiu uma psicologia de massas baseada na insegurança permanente, na sensação de cerco, na promessa de pertencimento.
“É nessa necessidade de segurança que o fascismo funda sua psicologia de massas”, escreve Furtado, sobre a experiência italiana. O indivíduo que se integra ao estado fascista sente-se parte de algo maior, heroico, histórico. Mesmo no nível mais ínfimo, acredita estar trabalhando para o mesmo objetivo de seu chefe supremo. No caso brasileiro, Jair Messias Bolsonaro.
A senhora do Tocantins, o pai de Salvador, o trabalhador que divulgou meu endereço não se viam como agressores isolados. Eles se percebiam como soldados. Como peças legítimas de uma engrenagem autorizada a destruir inimigos.
É assim que o fascismo corrompe um povo: não apenas mandando, mas oferecendo sentido à violência.
Não sei como a história vai nomear este período que vivemos. Mas sei que 2025 terminou para mim como um ano de ruptura. Um ano em que, a violência política deixou de ser um conceito e passou a ser uma experiência vivida.
Um ano em que ficou ainda mais claro que o bolsonarismo não é apenas um movimento eleitoral, mas uma força corrosiva que segue operando no tecido social brasileiro.
Cartas Marcadas entra em recesso durante o mês de janeiro. Mas, enquanto as edições não chegam na sua caixa de entrada, quero saber: o que este período político produziu em vocês? O que você espera do nosso trabalho em 2026?
Aproveite este tempo para revisitar nossas reportagens clicando aqui.
Nos vemos em fevereiro para um ano de ainda mais coragem e jornalismo.
Paulo Motoryn
Editor de Brasília
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