(Autor desconhecido)
Um país dividido entre opiniões e certezas
O Brasil atravessa um momento de intensa fragmentação social e simbólica. A polarização, que divide o povo em dois grandes blocos (direita e esquerda, ricos e pobres, progressistas e conservadores), revela mais que divergências políticas: expressa uma crise profunda de compreensão do mundo e de nós mesmos.
O que parece ser apenas um embate de ideias é, na verdade, um fenômeno mais complexo: uma depuração cognitiva, processo de choque e reconfiguração das estruturas mentais que moldam nossa visão de política, religião, ideologia, trabalho e comunicação.
A internet e a ilusão da evolução mental
A internet, celebrada como espaço de democratização do conhecimento, tornou-se palco de um experimento coletivo de desinformação.
A mesma rede que prometia ampliar o acesso à sabedoria se transformou em uma arena de opiniões instantâneas, onde todos falam e poucos escutam. A lógica das redes, regida por algoritmos que premiam o engajamento, consagra o sensacionalismo, a raiva e o imediatismo como formas predominantes de expressão.
A consequência é o que se poderia chamar de hiperinflação da opinião: uma enxurrada de discursos sem base, sem fonte e, na maioria das vezes, sem verdade. Nesse cenário, a figura do intelectual cede espaço ao “intelectualóide” , personagem que confunde eloquência com conhecimento, visibilidade com legitimidade, e acumula seguidores, não ideias.
Crise de referências e fragmentação do pensamento
As instituições que historicamente davam sustentação ao pensamento coletivo, a escola, a universidade, a imprensa e até as igrejas, perderam parte de sua autoridade simbólica. O vácuo deixado por elas foi rapidamente ocupado por lideranças efêmeras, formadas no calor das redes, guiadas mais por emoções do que por argumentos.
A sociedade contemporânea vive, assim, um colapso de referências.
Os valores antes compartilhados são substituídos por microidentidades de grupo; a empatia é trocada pela intolerância; e a busca pelo diálogo dá lugar à disputa moral. A comunicação se converte em confronto, e a política, em torcida.
O resultado é um país mentalmente exausto, em que a verdade se tornou uma questão de ponto de vista — e o senso coletivo, um bem em extinção.
Depuração ou colapso cognitivo?
Há quem veja nessa turbulência um processo natural de amadurecimento histórico: uma depuração necessária, em que o velho pensamento se dissolve para dar lugar ao novo.
Contudo, há um perigo evidente. A velocidade com que o mundo digital transforma tudo em espetáculo impede a consolidação de um pensamento crítico. A hiperconectividade acelerou o tempo da informação, mas não o da compreensão.
O pensamento reflexivo — aquele que exige pausa, dúvida e profundidade — tornou-se quase um ato de resistência.
Se a depuração cognitiva é inevitável, que ela não resulte apenas em ruído, mas em consciência.
Por um novo pacto de lucidez
O Brasil precisa, mais do que nunca, de um pacto de lucidez coletiva. Não se trata de calar as vozes, mas de qualificar o diálogo. De resgatar o prazer da escuta, o valor do argumento e o respeito pela complexidade.
O desafio não é apenas sobreviver ao caos, mas aprender com ele, transformar a confusão em consciência, a divergência em aprendizado e a informação em sabedoria.
Talvez este seja o verdadeiro sentido da depuração cognitiva: limpar o pensamento das impurezas da vaidade, da manipulação e da ignorância para, enfim, reconstruir a consciência de um povo que pensa, sente e age em busca de um mesmo futuro.
Por Raimundo Accioly
Professor e comunicador
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DEPUTAÇÃO COGNITIVA