Projeto indígena fortalece memória cultural e economia regenerativa através do protagonismo feminino e tecelagem tradicional
No Acre, mulheres Huni Kuin de 3 territórios próximos ao município de Jordão (Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão, TI Kaxinawá do Baixo Jordão e TI Kaxinawá Seringal Independência) estão redesenhando seu destino a partir dos fios que sustentam a memória ancestral do seu povo.
Durante oito dias de imersão na aldeia Novo Natal, Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão, o Instituto Ainbu Daya realizou o Encontro de Cultura Artes e Saberes Ancestrais, primeira etapa do projeto CASA, com apoio da Lei Rouanet e patrocínio do Grupo Energisa.
O Encontro do Projeto CASA reuniu 44 mestras artesãs e suas aprendizes, totalizando 150 mulheres em uma série de oficinas e vivências que fortaleceram práticas tradicionais e trocas interculturais. A programação incluiu tecelagem, cestaria, fiação manual do algodão e tingimento natural, além de formações de pintura em tecido, modelagem, corte e costura, gestão, empreendedorismo e audiovisual.
Integrando formas de produção a perspectivas socioambientais, o projeto abre caminhos concretos para geração de renda e autonomia por meio de uma economia regenerativa. Dessa forma, fortalece o protagonismo feminino e contribui para a preservação do patrimônio cultural do povo Huni Kuin, em sintonia também com a Agenda 2030 da ONU.
Tempo das Mulheres
O povo Huni Kuin é uma etnia pertencente ao tronco linguístico da família pano e habita o Acre e parte do Peru. Eles organizam sua história em tempos que marcam ciclos de luta, resistência cultural e transformação.
Hoje vivemos o “Novo Tempo”, um tempo de valorização, resgate e compartilhamento da cultura e cosmovisão Huni Kuin. Neste contexto, o Instituto Ainbu Daya, fundado e gerido por mulheres Huni Kuin, reconhece também o “Tempo das Mulheres”, momento em que vozes femininas ganham protagonismo dentro e fora das aldeias.
“Tem aldeias em que as mulheres não fazem mais tecelagem, não fiam mais o algodão. Por isso nós estamos fazendo esse encontro, para fortalecer esse trabalho. A gente não quer ficar pra trás, a gente quer ir pra frente com as mulheres fortalecidas, aprendendo a nossa tecelagem e a vender o artesanato”, compartilha Batani Huni Kuin, vice-presidente do Instituto.
Um projeto com raízes ancestrais e visão de futuro
Nas oficinas realizadas nesta primeira etapa do projeto, mestras e aprendizes compartilharam saberes e práticas tradicionais a partir de uma metodologia circular, centrada na oralidade, onde todas puderam ensinar e aprender juntas.
As expressões artísticas Huni Kuin mantêm uma ligação profunda com a floresta e com os roçados, de onde são coletados insumos de forma regenerativa, criando uma relação viva entre artesã, terra e produto. Esses saberes reúnem técnicas materiais e imateriais, entrelaçando cantos, mitos e histórias que dão sentido e enriquecem seus fazeres.
O encontro também teve espaço para momentos culturais e educativos, incluindo a culinária típica, pinturas corporais com jenipapo, cantos e rodas de conversa, fortalecendo a conexão comunitária e troca intergeracional de experiências. Em paralelo, foi iniciado o registro em desenho dos grafismos Kene Kuin e das plantas tintoriais, com seus nomes em Hãtxa Kuin, dando início a catalogação e a produção de amostras em tecelagem.
"O encontro foi de muito aprendizado. A gente aprendeu a fiar o algodão natural, o tingimento com o mashe, com mani dare, tunã e mais. Também fizemos desenhos dos Kene no pano e no caderno. Muitas artesãs não sabiam como era o tingimento natural. Também tivemos uma formação sobre como vender o artesanato e colocar preço em cada peça”, compartilha Hashuani Huni Kuin, mestra artesã participante.
O encerramento contou com um desfile para apresentação das roupas de tecelagem tradicionais produzidas pelas participantes. Houve ainda a distribuição de materiais para as oficinas, atendimento médico gratuito e tradução simultânea em Hãtxa Kuin durante toda a programação.
"Eu aprendi muito da nossa cultura. É uma grande alegria esse encontro das mulheres, todas aprendendo juntas. É muito haux", conta Bismani Huni Kuin Kaya, mestra artesã participante.
Esse conjunto de ações marca o início de uma jornada potente, mas também revela um desafio: como seguir adiante, tecendo esse futuro possível?
Desafios e caminhos para as guardiãs da floresta
O que já foi conquistado até aqui mostra o potencial do Instituto Ainbu Daya em fortalecer o protagonismo feminino dentro e fora das aldeias, com foco na transmissão de saberes, geração de renda e valorização cultural.
Investir neste projeto vai além do apoio à geração de renda: significa preservar um patrimônio cultural reconhecido pelo IPHAN e manter vivos os saberes ancestrais das mulheres Huni Kuin, as verdadeiras guardiãs da floresta e da memória coletiva, assegurando que essas práticas sigam protegidas e transmitidas às novas gerações.
No entanto, a continuidade do trabalho depende de novos apoios. A comercialização das peças enfrenta desafios estruturais, sobretudo pelo isolamento geográfico e pela logística cara e complexa, já que o município de Jordão não possui acesso por via terrestre.
Ainda em captação, a segunda fase do projeto Casa de Cultura, Arte e Saberes Ancestrais prevê o custeio do aluguel do espaço físico da sede administrativa e espaço pedagógico intercultural do Instituto Ainbu Daya, localizado no município de Jordão, por 1 ano.
Também contempla a continuidade das oficinas, o desenvolvimento de protótipos de peças e catálogo e a construção de um plano de negócios ético e viável, voltado a mercados que respeitem a origem cultural das peças. Além disso, estão previstas a produção de um material audiovisual e a realização de um novo desfile da coleção que será desenvolvida, desta vez no município de Jordão.
Impacto local com potência global
Ao emergir de um território de rica cultura, moldada por séculos de resistência, o povo Huni Kuin expressa sua história como um grande mosaico de saberes, onde cada aldeia guarda fragmentos únicos dessa memória viva. Nessa terra de rios serpenteantes e floresta exuberante, a arte não é apenas estética, mas um código ancestral que transmite identidade, espiritualidade e pertencimento.
É nesse movimento de partilha e reconstrução cultural que o projeto floresce, revelando ao mundo um patrimônio que é, ao mesmo tempo, belo, político e essencial para pensar novos caminhos de vida conectados à Terra. Nacionalmente, propõe um novo modelo de economia: indígena, feminina, agroecológica e regenerativa. Globalmente ecoa como resposta prática ao colapso de modos de vida desconectados do planeta.
FOTOS: Instituto
Ainbu Daya/equipe intercultural do projeto casa
Acompanhe o projeto
(68) 9236-7763 (Rita Huni Kuin - Secretária do Instituto)
(11) 93217-3163 (Bunke - Presidente do Instituto)
(68) 99203-7819 (Instituto Ainbu Daya)
Colaboração no texto: Diana P. Rodriguez
Tags:
memória ancestral