Muitos deputados seguem exercendo suas profissões de médicos, advogados e até apresentadores de televisão durante o mandato. Na ficha oficial de cada um deles no site da Câmara, a informação está ali, é pública. No caso de Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, o membro mais votado da Casa, no entanto, consta o seguinte: “Profissão não declarada”.
Nikolas escolheu esconder algo importante: ele é um empresário que tem enriquecido às custas de sua visibilidade como um dos mais radicais políticos da extrema direita.
Posso provar que Nikolas ganha dinheiro dessa forma porque eu mesmo contribuí com isso. Foram exatos R$ 497 que saíram da minha conta bancária e caíram na conta da Destra Cursos LTDA, uma empresa fundada em 2020 e da qual o Nikolas é sócio.
É um empreendimento relativamente antigo e já foi tema de uma ou outra matéria por aí. Mas que merece muito mais atenção.
Destra: o negócio de Nikolas
Antes de te contar o que aprendi nos cursos concluídos na Destra, vale relembrar: quando a empresa foi fundada, em setembro de 2020, Nikolas era candidato a vereador de Belo Horizonte – e ainda não aparecia no quadro societário.
Com menos de um mês, a empresa fechou contrato de R$ 68 mil com o então candidato a prefeito de BH, Bruno Engler, apoiado por Nikolas. Passada a eleição municipal, ainda naquele novembro pandêmico, Nikolas passou a integrar a sociedade da Destra.
Essa história até chegou a sair em um ou outro veículo da imprensa depois que o jornalista que revelou o caso no Twitter, Diego Feijó de Abreu, acionou o Ministério Público Federal. O órgão, porém, não viu crimes nos fatos e descartou uma investigação. Muita coisa se passou desde então.
Nikolas segue com 15% da participação societária em conjunto com outros dois jovens empresários: o curitibano Ivens Henrique Grahl Ribeiro, de 29 anos, e o goiano Arthur Torres de Assis, de 24 anos. Apesar da pouca idade dos sócios, a empresa tem movimentado cifras cada vez maiores.
Quase R$ 1 milhão na Meta
Reformulada, a empresa que nasceu fazendo campanha eleitoral virou uma plataforma de cursos no início de 2022 — o sócio Nikolas assumiu o papel de professor e garoto-propaganda. Em outubro daquele ano, o mineiro se elegeu com uma votação bombástica e virou um dos mais estridentes deputados da extrema direita. Sua estratégia online levantou suspiros de inveja de políticos de todas as matizes.
Já no início deste ano, quando o vídeo do deputado sobre a suposta taxação do PIX ganhou o mundo, com impressionantes 330 milhões de visualizações, muita gente foi atrás de sua relação com as big techs. A suspeita é de que os números pareciam inflados.
À época, algumas boas matérias circularam indicando que a empresa de Nikolas teria investido R$ 100 mil em anúncios nas redes sociais da Meta. Desconfiei que era pouco. E era. Além dos anúncios veiculados pelos perfis com o nome de Nikolas, encontrei milhares de peças pagas diretamente pela Destra. São mais de 3.300 anúncios que totalizam R$ 745,3 mil de abril de 2024 a abril de 2025.
É uma estratégia agressiva de tráfego pago – que se soma ao tráfego orgânico das redes de Nikolas. Na descrição do perfil do deputado no Instagram, utilizado para divulgar sua atividade parlamentar, está lá, à disposição, o link da Destra. Se levarmos em conta informações divulgadas pela própria empresa, a estratégia parece dar resultado, já que ela diz formar “mais de 60 mil cristãos”.
Resolvi fazer as contas. O único produto oferecido pela empresa é um plano de assinatura que garante acesso a dezenas de cursos, que custa R$ 500 – e, antes, chegou a custar R$ 685. Se todas as pessoas pagaram o mesmo valor que eu, o mais baixo, o negócio já trouxe mais de R$ 30 milhões aos seus sócios. Um deles? O Nikolas.
Eu prefiro acreditar que o número de clientes é inflado pela Destra, talvez para encorajar novos alunos. Enviei um e-mail para a empresa na última segunda-feira, 29, com essa e outras diversas perguntas. Até o momento, não houve resposta. O espaço segue aberto.
Minha jornada na Destra
Usei o PIX para garantir acesso ao “Plano Legado”, o produto oferecido pela Destra atualmente. Com isso, tive acesso a uma plataforma fechada com quatro “núcleos de formação”. Na prática, cada um deles é uma página com um layout diferente, mas todas imitando um “Netflix” em que cada pôster representa um curso.
Como assinei um termo que impede a reprodução de materiais do curso, não vou brindá-los com trechos das vídeo-aulas. Trago aqui, no entanto, o que mais me impressionou de tudo o que vi, ouvi e aprendi na plataforma da empresa do Nikolas.
Comecei pelos vídeos introdutórios chamados “Formação Destra”. São quatro minicursos online, cada um com três a oito vídeos com, no máximo, 15 minutos. O apresentador é um jovem que não se apresenta, não menciona qualquer formação acadêmica ou experiência profissional.
No primeiro vídeo que assisti, ele diz: “Você não está aqui por acaso. Talvez você tenha clicado em um link, algum anúncio ou propaganda ou até mesmo tenha sido convidado, mas quero que você saiba que chegou até aqui por um motivo maior. A Destra não é só uma plataforma, somos uma resposta para essa geração. E você, meu querido, faz parte disso”.
Me senti lisonjeado. Ele, então, apresenta a Destra da seguinte forma: “Somos um ecossistema criado para você, cristão, viver o Evangelho no dia-a-dia. A Destra é o fundamento. Não estamos aqui para te dar mais teoria ou te prender em debates. Aqui não há espaço para uma fé rasa”, conclui.
Depois dessas “boas-vindas”, parti para o primeiro núcleo, o “Destra Originais”. Comecei por um curso rápido chamado “Filosofia 10:31” — mais um apresentado por alguém não identificado. A filosofia é uma criação da Destra para oferecer um “novo estilo de vida” integrando a fé a todas as dimensões da existência.
“Vamos te apresentar o novo estilo de vida que você vai viver a partir de hoje”, diz o professor. “Nossa fé não é reservada para momentos de culto”, ele defende.
Depois, descobri que a tal filosofia – que parecia só um curso de autoajuda cristã – é o princípio que estrutura toda a plataforma. Os cursos vão de “como fazer amigos” a “como ter bons hábitos”, passando por “inteligência emocional” e “corrida de rua”. “Você precisa ser um cristão que se posiciona” é o mantra que atravessa os conteúdos, inclusive os de temas mais aparentemente neutros.
O Le Circle do Nikolas
Depois de alguns certificados conquistados, cliquei no núcleo seguinte, o “Le Circle” — por ter sido descrito como uma “comunidade viva e intencional”, com encontros ao vivo e trocas entre cristãos “comprometidos com o propósito”. Mas, infelizmente, essa funcionalidade ainda não estava disponível, apesar de um banner dizer que o lançamento seria em 23 de junho. Até agora, não foi ao ar.
Intrigado que a data já havia passado, fui checar no Google algo sobre o tal lançamento e digitei apenas: “Le Circle”. O primeiro resultado foi curioso. Eu não sabia – e espero, do fundo do coração, que o Nikolas também não. Mas Le Cercle (com “e” e não com “i) é o nome de um famoso grupo ultraconservador e anticomunista fundado na Europa.
No pós-Segunda Guerra Mundial, reunia políticos, banqueiros, militares e agentes de inteligência. E aqui vai um bônus: o grupo homônimo ao fórum concebido por Nikolas está ligado ao financiamento de regimes supremacistas, como o apartheid na África do Sul.
Depois, rumei ao núcleo “For The Nations”, cuja proposta é “levar a mensagem ao mundo”. Encontrei aulas de inglês com legendas, vocabulário cristão e conteúdos voltados à formação de uma “comunidade de aprendizado” — com grupos, fóruns e desafios.
O funil da radicalização
Por fim, o núcleo “Destra Front” é onde o jogo fica sério. Aqui, sim, finalmente aparece Nikolas Ferreira, em vídeos que funcionam como a “etapa final” do funil. A estética continua limpa, os vídeos têm ritmo, trilha e edição profissional. A pregação religiosa, embora ainda presente, aparece de forma mais sutil. Aqui, o púlpito vira palanque.
O principal produto oferecido no Front é o curso “O Cristão e a Política”. Nele, Nikolas apresenta a política como uma disputa entre o bem e o mal, em que os cristãos seriam chamados a combater forças que estariam destruindo os valores da família, da fé e da moral. E faz o pacote completo dos temas preferidos da extrema direita, repetindo opiniões e distorções sobre feminismo, socialismo e afins. Vou poupá-los disso.
Depois de atravessar toda a jornada, ficou claro que a intenção da Destra não é, em nenhum momento, dialogar com quem está fora da bolha cristã. Todas as aulas, de todos os módulos, poderiam ser pregações religiosas. A maioria delas, inclusive, se estrutura como tal: há um tom pastoral, versículos e apelos morais.
E aqui não há problema com a evangelização em si – ainda que cobrar tão caro por isso possa soar mal por aí. O que parece ser o objetivo, tanto quanto ganhar milhões de reais, é radicalizar politicamente os fiéis à extrema direita.
Digo isso como aluno: a plataforma funciona como uma usina de radicalização cristã, que não prega para converter, e sim para endurecer. Endurecer posições, fortalecer vínculos internos e, sobretudo, convencer que a agenda político-eleitoral da extrema direita é ungida por Deus.
Eu ainda tenho muitas horas de curso para fazer na Destra. E ainda há muito dinheiro a seguir nesse caso. Tenho algumas pistas. E pretendo trazer novidades em breve, numa edição futura. O que mais vocês querem saber sobre a Destra e as atividades empresariais e políticas do Nikolas?
E, aproveitando, é sempre bom lembrar: se você tiver o próximo grande furo de reportagem do país na mão, ou apenas uma informação que gostaria de dividir comigo, escreva para paulo.motoryn@intercept.com.br ou responda a esse e-mail. Vamos conversar. Mas, por ora, continue aqui comigo que ainda há um pouco mais a falar sobre Nikolas Ferreira.
Nikolas e a frente ampla cristã
O site Bereia, com o Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp, publicou um ótimo artigo sobre a aproximação de Nikolas com setores ultraconservadores do catolicismo. Ele recomendou livro do padre Paulo Ricardo, leu São Josemaría Escrivá, fez live com o padre Chrystian Shankar e usou conceitos como “abertura à vida”. O texto aponta que, mais do que conversão, Nikolas estaria unificando evangélicos e católicos da extrema direita. Leia aqui.
fonte: the intercept
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