Nossas crianças estão em perigo (THE INTERCEPT)


De forma muito educada, uma leitora nos contestou nesta semana. Ela questionou o formato que escolhemos para comunicar a nossa reportagem sobre como a Brasil Paralelo, uma das principais disseminadoras de ideologias de extrema direita, está invadindo escolas.

Mais especificamente, ela mencionava o teaser, um vídeo curto divulgado apenas nas redes sociais um dia antes da reportagem ser publicada, que perguntava: “você sabe o que seu filho está vendo na escola?”.

A leitora questionou se a gente não estaria usando uma linguagem excessivamente sensacionalista e apelativa, repetindo a fórmula de “pânico moral” da extrema direita. Fiquei reflexiva. Bem, o vídeo foi pensado para isso: apontar exatamente o tipo de linguagem que a extrema direita usa para capturar a atenção (e o medo) de sua base nas redes sociais.

Mas esse não é um pânico inventado: é um sequestro ideológico bem documentado do direito constitucional de nossos filhos a uma educação de qualidade por um grupo bem financiado de extremistas de direita.

Ou seja, ao contrário deles, não estamos exagerando. Mas o formato é, de fato, uma questão profunda sobre a qual temos refletido muito ultimamente. Deixa eu voltar uns passos para explicar.

Há muito tempo, o Intercept cobre as big techs e critica a lógica em que as plataformas funcionam: máquinas de chupar dados e devolver conteúdo que desperta sentimentos primitivos para, assim, garantir engajamento aos anunciantes. É a economia da atenção, o capitalismo de vigilância, captura e neocolonialismo das plataformas.

Eu mesma escrevi matérias no Intercept denunciando essas práticas em 2018, 2019 e 2020. Quando os jornalistas da grande mídia ainda aplaudiam as plataformas, nós já estávamos criticando. Esse pequeno disclaimer é importante para situar o nosso ponto de partida e como enxergamos essa questão.

Voltando à Brasil Paralelo. Nesta semana, eu e Paulo Motoryn mostramos como a produtora está invadindo escolas e ONGs com ‘bolsas’ financiadas por ‘mecenas’.

Já são 285 escolas parceiras, e o projeto de conquistar corações e mentes é ambicioso e de longo prazo. Afinal, o objetivo é combater o “progressismo”, ideologia que, na visão deles, se apossou da educação brasileira e precisa ser extirpada da sociedade.

É puro suco de olavismo, sim, e você pode entender melhor na reportagem e no podcast da Rádio Escafandro, que participei.

Recomendo também esse excelente texto do Fernando Cássio, professor da Faculdade de Educação da USP, que pontua todos os problemas dessa invasão: “a liberdade de escolha dos métodos e conteúdos de ensino, uma prerrogativa profissional dos professores, no entanto, não se confunde com liberdade irrestrita para propagar falsificações históricas e negacionismos científicos – os tais conteúdos ‘paralelos’ das bolhas ideológicas de extrema direita”.

Nosso objetivo, com essa reportagem, foi atingir um público amplo. Muita gente não tinha ideia que a produtora tinha esse programa e essa capilaridade. Não é só um “Netflix de direita", mas um projeto de poder muito bem estruturado e financiado.

Suas narrativas são pensadas para, sob um verniz científico ou isento, propagar uma visão de mundo conservadora, que contesta os direitos das mulheres, dos indígenas e a proteção ambiental.

A produtora também tem uma relação umbilical com as big techs. A Brasil Paralelo não seria o que é sem os milhões de reais que ganhou com o tratamento preferencial que recebeu dos algoritmos das plataformas. A produtora usa estratégias sofisticadas de SEO – técnicas para ficar no topo das buscas – e gasta uma grana comprando palavras-chave na busca do Google.

Se um desavisado procurar por “o que é feminismo”, pode cair num verbete criado por eles. E mesmo que você opte por assistir ao vídeo de outras pessoas sobre o assunto, é muito provável que a Brasil Paralelo seja sugerida pelo algoritmo para ver automaticamente depois.

A produtora também é a maior anunciante política da Meta: foram R$ 25 milhões despejados só em anúncios na plataforma dona de Facebook, Instagram e WhatsApp nos últimos quatro anos. Só em anúncios. É mais dinheiro do que o orçamento inteiro do Intercept neste período.

Então, não é exagero dizer: a Brasil Paralelo adora as big techs, e a recíproca é verdadeira. A cliente é tão importante que a Meta permite, por exemplo, que a produtora faça anúncios sobre “aborto”, disseminando pânico moral e atacando os direitos das mulheres, mesmo que “assuntos sociais” sejam tecnicamente restritos para anúncios e precisem passar por aprovação humana.

É uma verdadeira máquina de propaganda da extrema direita, que trafega muito bem porque está dando às plataformas exatamente o que elas querem: além do dinheiro, conteúdo altamente engajante.

Nós já mostramos que as redes sociais lucram quando você sente raiva – é pela mesma razão que teorias da conspiração e notícias falsas performam melhor: elas têm os gatilhos que as redes sociais premiam com engajamento.

Só nesta semana, três fatos mostram como o tema é crítico. Se discute, por exemplo, se sistemas de recomendação de conteúdo nas plataformas são de “alto risco” na regulação de inteligência artificial. O STF também está decidindo se as plataformas de internet devem ser responsabilizadas pelo conteúdo dos usuários. E a Austrália chegou a proibir redes sociais para menores de 16 anos – iniciativa que eu aplaudo, embora ainda careça de mais detalhamento.

Tudo isso aconteceu porque as plataformas continuam a se expandir, e nossa comunicação é mediada por essas regras invisíveis que escolhem o que deve ou não aparecer para você.

Até mesmo esta newsletter, que antes era relativamente livre de mediação algorítmica, começou recentemente a sofrer oscilações drásticas nas taxas de abertura com base na avaliação do algoritmo secreto do Gmail (a propósito, se quiser garantir que ele chegue, vá até a parte superior do e-mail, clique no remetente e adicione-nos à sua lista de contatos!).

Por isso, para chegarmos nas pessoas e efetivamente provocarmos mudanças, é preciso furar essas ondas de desgosto que são as redes sociais. E competir a atenção com quem, há muito tempo, usa as estratégias mais perversas e muito dinheiro para dominar o debate público com discurso de ódio.

O ecossistema de redes sociais é turvo, mas por ora é o caminho que a gente tem para chegar nas pessoas.

Ele demanda que a gente, de certa forma, hackeie um sistema que foi desenvolvido para eles, e não para nós. Adaptamos as nossas investigações e histórias mais importantes para a linguagem das redes, sem perder o nosso compromisso com o jornalismo e a qualidade do que produzimos. Porque, sim, existe uma ameaça da extrema direita sobre as crianças nas escolas – e o Brasil inteiro precisa saber disso.

Temos a obrigação de que nossa reportagem seja desdobrada para chegar no maior número de pessoas possível – o que fica muito mais difícil quando você tem um compromisso com os fatos e um respeito pelo seu leitor.

Qual é o equilíbrio certo entre buscar atenção e estar sóbrio? E pelo simples fato de jogarmos o jogo deles, já perdemos? Acho que a resposta é não – mas a linha, às vezes, é tênue.

Nós estamos constantemente experimentando e diversificando a linguagem, mas sem perder a nossa missão mais central. Por isso, estou grata à leitora que nos questionou.

A gente ouviu e refletiu como fazemos todo dia – porque é dessa comunidade que vem a nossa força. Afinal, as ondas das redes sociais passam, mas a necessidade de um jornalismo de qualidade só aumenta – especialmente aquele que fiscaliza e expõe quem quem lucra e se aproveita desse ecossistema que premia o ódio e a intolerância.

THE INTERCEPT

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