Barbacena, a cidade-manicômio que sobreviveu à morte atroz de 60.000 brasileiros

Internos do manicômio Colônia em uma fotografia de 1959

Quando João Bosco Siqueira completou 45 anos, seus colegas do corpo militar de bombeiros lhe deram algo de valor inestimável: localizar sua mãe. Aquela desconhecida era a chave das origens para este brasileiro que nasceu em um manicômio e cresceu em um orfanato. Missão cumprida. O abraço que dona Geralda e o filho arrebatado tanto desejavam aconteceu no dia 11 de novembro de 2011 em um quartel diante do olhar emocionado de dezenas de uniformizados. Um ponto final nas vidas de ambos. Geralda tinha 15 anos quando deu à luz no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, a 500 quilômetros de São Paulo. Seu patrão, um advogado, levou-a até lá para evitar o escândalo depois de estuprá-la e engravidá-la, conta Siqueira em uma entrevista por videochamada. A dor de relembrar o drama é tanta que para várias vezes para conter o choro e tomar ar antes de continuar seu relato. Antes e depois dela, dezenas de milhares de brasileiros foram abandonados em hospícios de Barbacena, que ficou conhecida como a cidade dos loucos.

A maioria dos internos, como Geralda, eram sãos. Eram alcoólatras, sifilíticos, prostitutas, homossexuais, epiléticos, mães solteiras, esposas substituídas por uma amante, inconformistas... supostas escórias sociais que suas famílias ou a polícia enviavam em trens a esta cidade de Minas Gerais. Cerca de 60.000 internos morreram de fome, frio ou diarreia durante nove décadas até o fechamento nos anos noventa. Viviam mal, nus, forçados a trabalhar como suposta terapia em pátios na intempérie ou em celas.

A ansiedade que o confinamento da pandemia causou a milhões de pessoas em todo o mundo reacendeu o debate sobre a saúde mental e o estigma que ainda a cerca. Um segredo que ídolos como a ginasta Simone Biles ou a tenista Naomi Osaka ajudam a romper ao falarem de seus problemas mentais.

João Bosco e sua mãe, Geralda, que era uma adolescente internada no manicômio quando deu à luz. Ambos se encontraram quatro décadas depois

Barbacena chama atenção porque, em vez de enterrar a infâmia perpetrada em nome da psiquiatria, as autoridades concordaram em olhá-la de frente. Transformaram um dos pavilhões do Colônia no Museu da Loucura, que agora completa 25 anos, aniversário que junto com uma série trouxe o assunto de volta à atualidade. E, em sintonia com o movimento internacional de humanização dos cuidados aos doentes mentais, a partir do ano 2000 empreenderam uma mudança transcendental.

Esta cidade que vivia de hospitais psiquiátricos e do cultivo de rosas substituiu aqueles depósitos indesejáveis por residências terapêuticas. “Até então não havia limite. Entrava todo aquele que aparecia na porta. Começamos a avaliá-los um a um e a maioria não precisava ser internada. As internações caíram de 130 por mês para 30”, explica Flávia Vasques, coordenadora da rede pública de saúde mental desta cidade de 140.000 habitantes, durante entrevista em um ambulatório.

Quarto no Hospital Colônia em 1959 

O museu é um percurso pelas atrocidades sofridas por milhares de pacientes, algumas em consonância com práticas internacionais. “Escolheram chamá-lo de Museu da Loucura para despertar o interesse do público e por não se referir apenas a uma história local, mas por ser uma referência para analisar o passado, preservá-lo e não repeti-lo”, explica a diretora do museu, Lucimar Pereira, enquanto guia a visita.

Aproveitando o clima de montanha, nasceu como sanatório para ricos, com telefone e talheres de prata, mas em 1903 tornou-se o primeiro manicômio de Minas Gerais, que centralizou em Barbacena o atendimento psiquiátrico neste Estado que tem a mesma área da Espanha.

O Colônia era um manicômio com cemitério, evidência de que curar não era a missão. Durante décadas não houve médicos ou enfermeiras, mas meros guardas. O tratamento era simples: comprimidos azuis ou rosas em função dos sintomas, além de eletrochoques e lobotomia, como mandava então a medicina.

Quando faltou espaço para dormir, os burocratas adotaram uma solução batizada de leito único que recomendaram estender a outros centros: fora com as camas, eliminadas. Sem elas, cabiam mais pacientes. Os internos dormiam amontoados no chão para se aquecer nas noites frias. Alguns morriam sufocados. Muitas vezes os sãos enlouqueciam. E nem mesmo depois de mortos tiveram piedade deles. Os cadáveres de mais de 1.800 pacientes foram vendidos para universidades até os anos setenta. O resto era levado em um carrinho até o cemitério para ser jogado em valas comuns. O cemitério ainda está lá, fechado, mas uma placa promete um dia transformá-lo em um memorial que combinará rosas e loucura. Eram alimentados com purês putrefatos porque baniram os talheres —em nome da segurança—, de modo que depois de décadas sem mastigar muitos perderam os dentes.

Algemas usadas para conter os internos, a maioria dos quais não era doente mental

“Hoje estive em um campo de concentração nazista. Em nenhum lugar vi algo assim”, declarou depois de visitar o Colônia em 1979 o psiquiatra Franco Basaglia, promotor da reforma dos manicômios na Itália. Jornalistas locais fizeram as primeiras denúncias públicas nas décadas de sessenta e setenta. Suas fotos e relatos causaram espanto, mas logo caíram no esquecimento. A jornalista Daniela Arbex era adulta quando ouviu falar pela primeira vez do atroz episódio da história local. “Fui procurar os sobreviventes. E graças a eles consegui resgatar o que acontecia atrás das paredes”, explica por telefone a autora do livro Holocausto Brasileiro, publicado em 2019. Um best-seller que contribuiu para divulgar um horror de que muitos brasileiros nunca ouviram falar. Ela insiste que todos foram cúmplices: os médicos, as famílias, os moradores, a sociedade em geral...

Siqueira conta na cidade onde passa o confinamento com a família que sua mãe, dona Geralda, ainda mora em Barbacena. Eles se viam todo mês até que o coronavírus perturbou tudo. O bombeiro se irrita com o fato de que alguns moradores acreditem que divulgar as atrocidades prejudica a reputação local. Para ele é o melhor antídoto para evitar que ninguém mais seja tratado de maneira tão desumana. “Apesar de ter nascido na barbárie, sou fruto de uma rede de solidariedade”, insiste, referindo-se às freiras e outros adultos dos orfanatos, que o guiaram quando era adolescente e invejava aqueles que recebiam alguma visita.

Bento Marcio da Silva sempre teve família. Mas passou metade de seus 57 anos entrando e saindo de hospitais psiquiátricos, incluindo o Colônia. Fala com naturalidade de sua doença —”sou bipolar”— e da batalha para que os psiquiatras mudassem a medicação que durante 15 anos lhe causou terríveis efeitos colaterais. Ele conta entre risadas que em seus momentos de euforia cantava, cantava, cantava e cantava sem descanso. A resposta? “Eles me amarravam em uma maca, me davam injeções aqui, aqui, aqui e aqui, e me mantinham ali o dia todo. Acabava totalmente encharcado de urina e fluidos. ‘Se me derem Aldol, vou perder o juízo’, lhes dizia, mas insistiam”, conta. Ninguém o escutava então. Durante anos vagou pelas estradas do Brasil para evitar que o encerrassem novamente. “Cheguei a ter uma barba tão longa que me chamavam de Bin Laden”, diz. Uma imagem que contrasta com sua esmerada elegância atual.

Silva mora em uma residência terapêutica que na terça-feira estava em festa porque Zezé, um dos sete pacientes, completava 60 anos. É emocionante ver esses homens abandonados e degradados durante tantos anos concentrados em segurar os talheres para levar à boca um pedaço de bolo ou um copo de Coca-Cola sem cafeína. No êxtase da alegria, Zezé ri tão alto que desloca a dentadura. Com suas muitas sequelas, parecem imensamente felizes enquanto cantam “parabéns para você”. Não têm mais medo dos desconhecidos nem de sair na rua. E os moradores da cidade também não os temem, explica Leandra Melo Vidal, coordenadora das 27 residências espalhadas por Barbacena, que conhece detalhadamente as histórias de cada um. Eles a adoram.

O tratamento consistia em comprimidos rosas ou azuis em função dos sintomas, lobotomias ou eletrochoques sem anestesia. Hoje alguns destes utensílios estão expostos no Museu da Loucura

Alguns dos sobreviventes são muito dependentes, mas a mudança experimentada por outros é impressionante. “Com a reabilitação, foram recuperando capacidades humanas como escolher”, decidir quando tomar banho ou que roupa vestir. Foi difícil para eles abandonar as rotinas dos anos intramuros ou assumir que podiam acumular pertences, comer à vontade. No início, os terapeutas acreditaram que alguns eram mudos porque ficaram sem pronunciar uma palavra durante 50 anos —”talvez para se proteger”, arrisca Vidal—, até que um dia recuperaram a fala.

Mediante programas financiados pelo sistema de saúde pública, deixaram para trás uma vida em hospitais psiquiátricos desumanos para viverem a velhice juntos e com dignidade. Existem legalmente, recebem uma pensão. O processo de esvaziamento dos hospitais continua. Os 85 pacientes crônicos que ainda estão internados serão distribuídos pelos municípios vizinhos devido à saturação de Barbacena.

Quando Geralda tinha quinze anos e protestava desconsolada que seu bebê havia sido roubado, era tratada com eletrochoques. “Chorar e protestar não vai adiantar nada, você não vai voltar a vê-lo”, avisaram-na então. O bombeiro Siqueira, que lhe deu dois netos, fica feliz por ela não ter feridas mais graves: “Deus foi generoso com a minha mãe, que é uma mulher simples, porque se ela tivesse consciência da violência que sofreu teria enlouquecido”.

Bento Marcio da Silva, à esquerda, e Zezé na festa de 60 anos do segundo na residência terapêutica de Barbacena, em que ambos vivem. Antes estiveram internados em hospitais psiquiátricos durante muitos anos 


POR NAIARA GALARRAGA GORTÁZAR

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