Protesto indígena de 1987 serve como referência para mobilização no AC contra PL 490


Em Rio Branco, organizações indígenas do Acre fizeram mais uma manifestação contra o Projeto de Lei do Marco Temporal (PL 490/2007), que foi aprovado pela Câmara Federal com 283 votos. O ato simbólico ocorreu na Universidade Federal do Acre (Ufac), no último sábado (3), durante a retomada da plenária de elaboração do Plano Plurianual (PPA) nas unidades federativas, que havia sido suspensa pelos governos Temer e Bolsonaro.


Como representante dos povos originários, o diretor executivo da ONG Matpha (lê-se mat'parra) reproduziu uma performance de quase quatro décadas atrás, que, como diria Cazuza, fez o auditório lotado ver "o futuro repetir o passado". Ruwi Manchineri, de 26 anos, protagonizou uma fala potente sobre a importância dos indígenas na luta pela vida na floresta e contra as mudanças do clima. 
"Segundo dados da ONU [Organização das Nações Unidas], nós somos 5% da população mundial, ocupamos 28% da superfície terrestre e preservamos 80% da biodiversidade do planeta. Ainda assim, senhoras e senhoras, somos os mais atacados pelo Estado! Estamos caminhando a passos largos para uma catástrofe global e vemos a nossa política indo na contramão para resolver a crise climática", disse.


O jovem se inspirou na Assembleia Constituinte de 1987. Lá, Ailton Krenak pintou a face de tinta durante um histórico discurso contra os retrocessos dos direitos indígenas. Até hoje, aliás, Krenak serve como referência de resistência e é reconhecido por organismos internacionais como uma das lideranças mais importantes do país.


"Sangue indígena, nenhuma gota a mais!"

O movimento quer sensibilizar o Executivo estadual e o Congresso Nacional sobre a invisibilidade dos povos originários na agenda política do Estado. Mesmo sem realizar audiências públicas, a maioria dos parlamentares apoiou o PL 490/2007 no último dia 30, que já foi apontado como inconstitucional pelo Ministério Público Federal (MPF).

Enquanto tingia o rosto com o vermelho cor de sangue extraído das sementes de urucum, Ruwi Manchineri denunciou o descaso da elite política brasileira à sociedade civil organizada, aos representantes do governo Lula e às autoridades do Acre, como o governador Gladson Cameli (Progressistas), os deputados federais Socorro Neri (Progressistas) e Coronel Ulysses (União Brasil) e o senador Sérgio Petecão (PSD).

"O governo do Acre está sendo multado em R$ 100 mil por dia por não ter implementado o Conselho Estadual Indígena, que deveria nos dar vez e voz nas decisões públicas. Esperamos contar com o apoio do senhor, governador Gladson. (...) Para os próximos quatro anos, senhores, queremos respeito às nossas vidas, terras, cultura e visão de mundo. Queremos um Brasil com interesses alinhados à preservação do meio ambiente, às políticas socioeconômicas, à saúde e à educação em nossas aldeias".

As organizações indígenas também clamam pelo cumprimento da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI) e pela implementação do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), assim como o reconhecimento de novas terras que estava suspenso desde 2018.

Falta de demarcação de terras indígenas alimenta escalada da violência

O PL 490/2007 sustenta a tese do marco temporal criada pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida também como bancada ruralista, que limita a demarcação aos territórios ocupados até 5 de outubro de 1988, mesma data de publicação da Constituição Federal. No mês de janeiro, após a cerimônia de posse, o presidente prometeu a continuidade do reconhecimento de todas as terras indígenas até o fim do seu mandato, sem prever o impasse político que enfrentaria meses mais tarde.

No dia de encerramento da 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), em maio, Lula assinou a homologação de seis Terras Indígenas (TIs): Arara do Rio Amônia (AC), do povo Arara; Uneiuxi (AM), do povo Nadöb; Kariri-Xokó (AL), do povo Kariri-Xokó; Tremembé de Barra do Mundaú (CE), do povo Tremembé; Avá-Canoeiro (GO), do povo Avá-Canoeiro; e Rio dos Índios (RS), do povo Kaingang. Outras sete TIs aguardam na fila e mais de mil ainda nem iniciaram o processo.

Se o marco temporal for aprovado de vez, essas e outras etnias correm o risco de perder o direito de uso de suas terras, até mesmo os povos isolados na floresta. Outro efeito colateral deve ser a escalada de crimes ambientais e contra os direitos humanos, a partir da ocupação de grileiros, que derrubam árvores e roubam terras públicas, e de garimpeiros, que envenenam o solo e os rios da bacia amazônica.

De acordo com um relatório da Comissão da Pastoral da Terra (CPT), a violência contra os indígenas brasileiros representa 38% dos assassinatos no campo registrados em 2022. Além disso, o uso de mercúrio na mineração ilegal de ouro já impõe uma triste realidade de fome, doenças e morte de gerações.

Entenda como o PL 490/2007 voltou à pauta

A comissão mista do Congresso Nacional já havia aprovado a Medida Provisória 1.154/23 no dia 24 de maio, que reorganiza a estrutura do governo Lula e esvazia a pauta ambiental em detrimento do Centrão.

Um dos exemplos é a retirada da demarcação de terras indígenas do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, que foi movida para o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

No mesmo dia, a Câmara Federal aprovou um requerimento de urgência para o PL 490/2007, que foi votado apenas uma semana depois, em 30 de maio. De forma estratégica, os parlamentares queriam se antecipar à decisão final do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema.

O presidente da Casa e a FPA são as principais apoiadoras do projeto. Nas duas eleições à presidência, Arthur Lira (Progressistas/AL) se elegeu com os votos dos ruralistas.

No Senado, o projeto vai tramitar como PL 2.903/2023, mas ainda não há data definida para a votação.

Marco Temporal também tramita no STF; julgamento será na quarta

A análise do marco temporal no STF iniciou em agosto de 2021, mas apenas dois ministros votaram até o momento. Kassio Nunes Marques se manifestou favorável e Edson Fachin rejeitou a tese. O caso foi interrompido após um pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes e volta a ser julgado na próxima quarta-feira (7).

MPF aponta inconstitucionalidade no projeto

A 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) divulgou uma nota pública, em 29 de maio, reafirmando a inconstitucionalidade do PL 490. Veja, abaixo, os principais trechos do documento:

"(...) Ocorre que o estatuto jurídico das terras indígenas, disciplinado pelo artigo 231 da Constituição, não pode ser alterado por lei ordinária, o que demonstra a patente inconstitucionalidade do PL 490/2007. Ademais, os direitos dos povos indígenas, em especial o direito ao seu território tradicional, constituem cláusula pétrea, integrando o bloco dos direitos e garantias fundamentais, não podendo ser objeto sequer de emenda constitucional.

A Constituição garante aos povos indígenas direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo a tradicionalidade um elemento cultural da forma de
ocupação do território e não um elemento temporal. Fixar um marco temporal que condicione a demarcação de terras indígenas pelo Estado brasileiro viola frontalmente o caráter originário dos direitos territoriais indígenas.

Ademais, a tese do marco temporal, se aprovada, consolidaria inúmeras violências sofridas pelos povos indígenas, como as remoções forçadas de seus territórios, os confinamentos em diminutos espaços territoriais, os desapossamentos, os apagamentos identitários históricos, entre outras".

Vozes indígenas na luta

No Acre, os protestos são mobilizados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab), ONG Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (Matpha), Organização dos Professores Indígenas do Acre (Opiac), União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), Coletivo dos Estudantes Indígenas da Universidade Federal do Acre (Ceiufac), Federação do Povo Huni Kui do Estado do Acre (Fepac) e Mulheres Indígenas do Acre, Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia (Sitoakure).

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