Comunidade de indígenas isolados que vivem sem nenhum contato com a sociedade (e a menos de 15 quilômetros de um garimpo) na Terra Indígena Yanomami. Segundo a Funai, trata-se de um grupo do povo Moxihatëtëa, monitorado desde 2010. A imagem foi feita em 9 de fevereiro de 2023. Foto: Leo Otero/Ministério dos Povos Indígenas
Metade das terras indígenas exploradas ilegalmente por garimpeiros no Brasil são territórios em que vivem povos isolados. Essa é uma das constatações do estudo Isolados por um Fio: Riscos Impostos aos Povos Indígenas Isolados, publicado em janeiro deste ano pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
A análise dos pesquisadores aponta, ainda, as cinco maiores ameaças às quais esses grupos estão submetidos, na maioria das vezes de forma sobreposta – mais de uma ou todas ao mesmo tempo. A primeira é a instabilidade jurídica e institucional, porque muitas terras não estão legalizadas e isso aumenta a vulnerabilidade diante de disputas territoriais e violências; depois vem o desmatamento ilegal, seguido por queimadas, grilagem e garimpo.
Essas populações poderão ser exterminadas se as violações ao meio ambiente, ao modo de vida e à saúde não forem contidas. Para isso, as instituições precisam ser fortalecidas e agir rapidamente. Como? Demarcando terras. Expulsando invasores. Garantindo direitos fundamentais.
Os territórios em situação mais grave atualmente são as terras indígenas Ituna-Itatá (no Pará, vizinha à hidrelétrica de Belo Monte), Jacareúba-Katawixi (perto da expansão agrícola entre os estados do Amazonas, Acre e Rondônia), Piripkura (considerada de uso exclusivo de isolados e que sofre com desmatamento e grilagem, em Mato Grosso) e Pirititi (impactada pelas obras de infraestrutura da BR-174, em Roraima).
Fonte: Ipam e Funai (2022). Infografia: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA
Dados do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) enviados ao grupo de transição do governo Lula já alertavam a nova gestão de que essas terras indígenas em situação de emergência eram as mesmas que tiveram suas portarias de restrição de uso em constante ameaça durante o governo Bolsonaro, que inúmeras vezes se recusou a renová-las e só cedeu após determinação judicial. As portarias têm o objetivo de resguardar o povo indígena isolado e proteger seus territórios para que o principal órgão indigenista brasileiro, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), faça o trabalho de identificação e fiscalização do espaço enquanto o processo de demarcação desse território não é finalizado.
Não há país na América do Sul com mais povos indígenas isolados do que o Brasil. Talvez nem no mundo. A Funai registra a existência de 114 grupos. Desses, 28 têm presença confirmada e territórios delimitados, esperando apenas o reconhecimento como território indígena. Há 26 em estudo e 60 em situação de informação. Mas o número pode ser maior porque há casos em que a Funai ainda não se manifestou sobre localizações feitas por Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs), que são unidades de campo do Sistema de Proteção aos Índios Isolados e de Recente Contato (SPIIRC).
Os indígenas isolados desde sempre resistem a constantes violências e a inúmeras tentativas de contato forçado. Bolsonaro cortou recursos da Funai principalmente no programa Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas, que inclui o resguardo dos territórios. Durante seu mandato, ele também colocou à frente do órgão indigenista o delegado de polícia Marcelo Xavier, um anti-indígena que perseguiu inúmeras lideranças e organizações, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a atual ministra Sonia Guajajara e o líder indígena Almir Suruí, que foram acusados de “propagar mentiras” contra o governo Bolsonaro.
Os povos indígenas em isolamento e os de recente contato têm características distintas, línguas, tradições e organização social próprias que são garantidas na Constituição Federal nos artigos 231 e 232, e é de direito que seus territórios sejam reconhecidos e demarcados. Nelly Marubo, técnica de projetos da gerência dos povos indígenas isolados e recente contato da Coiab, explica que os invasores, como garimpeiros, madeireiros e pescadores ilegais, são ameaças importantes. “Eles [invasores] deixam os territórios indígenas em uma situação crítica. Contaminam a água de maneira que, além da escassez de peixes e outros tipos de caça, esses povos são afetados com doenças de pele e outros tipos de doença, podendo levar à morte, pois eles [indígenas isolados] não têm contato com as doenças daqui, desta sociedade, e isso é preocupante”, afirma Nelly.
Genocídio yanomami
Desnutrição, contaminação por mercúrio, violência, estupros, mortes e impacto na organização social são problemas apontados por lideranças da maior terra indígena do Brasil, a Yanomami. Nesse território, há presença confirmada de povos isolados e as violências citadas nesta reportagem deixam esses indígenas em situação de genocídio em massa. Nos últimos anos, quem deveria ter ajudado a proteger esses espaços nada fez de efetivo, como mostra a cobertura de Sumaúma sobre o caso.
Segundo o presidente da Urihi Associação Yanomami, Júnior Hekurari Yanomami, a Funai, na gestão Bolsonaro, atuou de forma bem escassa, e isso afetou diretamente a vida dos povos de recente contato e isolados. “A Funai não atuou de forma integral dentro do Território Yanomami. Algumas vezes realizava doações ou participava de operações, mas de forma bem distante”, conta. “Não tivemos apoio quando realmente necessitamos nem respostas à altura do que fariam para buscar formas de retirar os invasores.”
O líder indígena diz que os povos isolados evitam até mesmo os próprios Yanomami de recente contato. “Eles têm receio e, sempre que são descobertos, mudam de localidade. Por isso é preciso a proteção do território, pois somos nós que poderemos protegê-los”, explica Júnior.
Nunca mais?
Tragédia – é assim que o servidor da Funai Rodrigo Ayres, indigenista especializado da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena, avalia a atuação do governo Bolsonaro em relação aos povos isolados. “Bolsonaro foi uma tragédia, um descalabro. Não dá nem para dizer que foi um descaso, porque tivemos uma política pública conscientemente elaborada para entregar os territórios a criminosos ambientais, inclusive com a perseguição de servidores que se opuseram de forma mais veemente a esses ataques. Um cenário apocalíptico, que precisa ser investigado. O assassinato de Bruno Pereira representa o ápice dessa política pensada e executada contra os povos isolados. Bruno entregou a sua vida pela causa e balançou o mundo com a sua partida”, destacou Ayres.
Com muita emoção, Ayres, que há cinco anos vivencia a resistência desses povos, destaca a importância de a sociedade entender que essa luta não é apenas dos indígenas e dos indigenistas, e sim de toda a humanidade. “É comovente ver a força e a resistência desses povos, que nos provam a cada dia que uma outra forma de se organizar socialmente é possível”, diz. E levanta alguns exemplos: “A forma como viveu e resistiu – mesmo após a sua morte – o Tanaru [conhecido como ‘índio do buraco’, o último sobrevivente do genocídio de seu povo], que ficou na floresta sozinho por mais de 20 anos, recusando o contato com os não indígenas. E tem os Piripkura, dos quais restaram apenas três sobreviventes de massacres, que ainda assim conseguem sorrir e cantar”.
Para Ayres, essa resiliência é ainda mais notável diante da condição de extrema vulnerabilidade desses grupos que vivem sob pressão em lugares cobiçados por atividades de exploração predatória da floresta. “Como os indígenas isolados dependem exclusivamente da floresta para sobreviver e não têm imunidade contra as doenças dos não indígenas, a crescente pressão sobre suas terras aumenta o risco de genocídio. O cerco está se fechando, porque as frentes de expansão e colonização estão cada vez mais perto, e as áreas de floresta estão diminuindo. É uma situação extremamente preocupante, que merece a devida atenção por parte do Estado e da sociedade”, diz o indigenista.
Há um aviso de genocídio diante dos olhos da sociedade. Garimpeiros, empresários, políticos e missões evangélicas ameaçam a vida desses povos. A ação imediata para a proteção de pessoas e territórios é urgente e necessária.
A Funai escreverá uma nova história?
“Tem de buscar alternativas para um orçamento que se possa cumprir, inclusive com as promessas de campanha do próprio presidente Lula”, diz Joenia Wapichana, presidenta da instituição
Advogada e primeira parlamentar indígena do Brasil, Joenia Wapichana é a nova presidenta da Funai. Pela primeira vez o principal órgão indigenista do país, criado em 1967, tem uma presidenta indígena. Em relação aos povos isolados, Joenia afirma que vai cumprir a missão da Funai como instituição, mas sabe que os desafios não são poucos, principalmente por causa dos desmontes sofridos pela fundação nos últimos anos.
“Tenho que cumprir a missão institucional que a Funai não estava cumprindo, [pois] deixou muitos invasores entrar, não tinha uma política de proteção permanente”, diz Joenia. “Isso que aconteceu em relação ao assassinato do Bruno Pereira e do Dom Phillips é um exemplo de como estavam funcionando as coisas dentro da Funai. Já fizemos algumas reuniões com algumas lideranças do Vale do Javari, com servidores que atuam frente aos indígenas isolados de recente contato, sabemos da importância de ter uma política mais séria, mais responsável, então é justamente nessa linha de entendimento que a gente vai atuar.”
Joenia lembra que o Ministério dos Povos Indígenas criou um departamento exclusivo para justamente fortalecer essa temática [a antropóloga Beatriz Matos, viúva do indigenista Bruno Pereira, dirige o Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato]. E completa: “A Funai tem que atuar nessa linha. Hoje a prioridade é uma política clara, eficiente e eficaz. Uma fiscalização presente e reforçada”.
Quanto ao orçamento, a presidenta afirma que houve um aumento de pouco mais de R$ 100 milhões de 2022 para 2023, mas que ele é insuficiente: “Tem de buscar alternativas para um orçamento que se possa cumprir, inclusive com as promessas de campanha do próprio presidente Lula”. O orçamento da Funai, sancionado em janeiro de 2023, é de pouco mais de R$ 514 milhões. No entanto, o valor reservado ao programa Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas é de cerca de R$ 80,5 milhões, dos quais R$ 40,4 milhões são destinados à Regularização, Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas e Proteção dos Povos Indígenas Isolados.
Por Erica Saboya para Sumaúma
fonte: OUTRASMÍDIAS
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