Por Cleo Manhas, na Le Monde Diplomatique Brasil
A desigualdade educacional no Brasil se agravou na pandemia e, graças a uma pesquisa de opinião encomendada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) ao Instituto Vox Populi, esse efeito conseguiu ser mensurado entre os alunos do ensino médio. Durante o mês de julho de 2021, foram entrevistados adolescentes de todo o país, de 15 a 19 anos, que cursavam, concluíram até 2020 ou abandonaram os estudos nessa etapa de ensino, comparando as redes pública e privada. As conclusões não diferem das demais desigualdades vistas em diversas áreas no Brasil, com a diferença de que, no sistema educacional, ela tende a piorar após a obrigatoriedade da reforma aprovada para o ensino médio em 2022.
Uma boa pista sobre como tem aumentado o privilégio dos estudantes ricos sobre os mais pobres está na elitização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Realizado em 21 e 28 de novembro, este foi o ano com menor número de inscritos desde 2005, com 3,1 milhões de candidatos, ante um número que chegou a 8,7 milhões em 2014. Uma das razões para este contraste foi a negação do governo federal na isenção da taxa de inscrição aos estudantes de baixa renda que não compareceram ao exame em 2020.
Com o mínimo de bom senso, é possível entender que, naquela ocasião, o índice de contágio pelo novo coronavírus estava muito alto e muitos adolescentes tiveram receio de participar. Além disso, vários relatos apontavam para a falta de cuidados necessários para fazer a prova em segurança. Somado ao fato de não realizarem o exame pela falta de recursos para se candidatar à prova, esses jovens ainda são penalizados pelo atual cenário de desmonte de políticas públicas, em meio a um contingente de 14 milhões de desempregados.
Há algo muito errado em um país onde parte considerável dos jovens não consegue realizar o simples ato de se inscrever em uma prova como a do Enem. Por trás dessa estatística, estão adolescentes de famílias de baixa renda, negros e negras, periféricos ou moradores das zonas rurais, todos bastante afetados pelo momento sanitário atravessado pelo mundo e, no Brasil, agravado por um governo negacionista e genocida.
A baixa qualidade do ensino médio ofertado pela rede pública durante a pandemia também contribuiu para manter esse perfil de estudante distante do exame nacional. A pesquisa do Inesc revelou, por exemplo, que 73% dos alunos do ensino público acreditam ter estudado menos horas no modelo remoto. A desigualdade de acesso às aulas entre as redes privada e pública fica evidente quando se analisa o número médio de horas por dia de estudo, de acordo com a percepção dos estudantes: na rede pública, o número é de 3,18 horas, enquanto na rede privada é de 4,28 horas, o que corresponde a uma diferença de 35%.
Sobre os equipamentos necessários para o ensino remoto durante a pandemia, os estudantes da rede pública, em geral, utilizaram celulares, visto que 60,3% afirmaram não ter computador ou laptop. Em contrapartida, 54,1% dos estudantes da rede privada possuem computador ou laptop exclusivos para o estudo. Na rede pública, mais da metade dos estudantes (53,5%) utiliza apenas celular para as aulas, enquanto na rede privada são 16%. Outro dado importante é que 50,2% de estudantes da rede privada possuem em casa até três equipamentos (computador, celular e impressora), contra apenas 11,6% da rede pública. O fosso é enorme com relação às condições impostas pelo ensino à distância.
Há que se considerar ainda, que, somados os que responderam usar celulares compartilhados, com prejuízo ou não para seus estudos, são 10,5% na rede pública, o que equivale, em termos absolutos, a cerca de 650 mil estudantes do ensino médio. Trata-se de um número considerável, uma vez que – além de assistirem a aulas por celular, o que já é precário – os estudantes ainda precisam compartilhar o dispositivo com outras pessoas da casa.
Acrescido a isso, há o acesso à internet. Um número menor de estudantes da rede pública tem acesso à banda larga (75,8%), em comparação aos da rede privada (92,1%). No entanto, o que causa maior indignação é o fato de se ter 5,5% de alunos de escolas públicas sem acesso algum, somados a outros 5,4% com acesso limitado a pacotes que duram uma semana no mês. Em termos absolutos, isso significa cerca de 1,3 milhão de adolescentes, estudantes do ensino médio, sem acesso ao ensino remoto ou com acesso muito precário.
(Foto: Uanderson Fernandes/ Ascom – Seeduc-RJ)
As desigualdades abissais
Analisando-se os dados por raça/cor, é perceptível que, mesmo entre a mesma rede, há desigualdades raciais: 7,5% dos pretos não têm acesso algum à internet, contra 3,6% dos brancos. Se olharmos para toda a população negra (pretos e pardos), são 13,2% sem acesso. Entende-se que os que não têm acesso ou têm acesso precário, com pacotes de dados que duram metade do mês ou apenas uma semana, não tiveram aulas cotidianamente, o que precarizou ainda mais o ensino já precarizado.
As pessoas brancas acessam escolas com melhores condições, ou seja, 33,4% de pessoas brancas estudam em escolas que oferecem melhores estruturas para o ensino remoto, contra 25,6% de pessoas pretas. O mesmo ocorre em relação à renda: famílias com renda acima de cinco salários mínimos têm 43,3% de seus adolescentes estudando em escolas com estrutura e apenas 26,7% de adolescentes com renda familiar de até um salário mínimo têm as mesmas condições.
Meninas assumem mais atividades domésticas durante a pandemia
Quando os dados são analisados por sexo e renda familiar, percebe-se que, mesmo dentro de uma única rede, o sexismo aparece, pois as meninas (31,7%) assumiram mais atividades domésticas do que os meninos (19,3%). E entre os meninos há uma quantidade maior que teve de assumir trabalho fora de casa. Contudo, mais da metade das meninas (54%) teve que desempenhar alguma tarefa além dos estudos. Isso pode explicar, em parte, uma maior incidência de problemas emocionais entre meninas. Percebe-se, ainda, que as pessoas pretas e pardas (negras) também assumiram mais tarefas, comparadas às pessoas brancas.
Reforma do ensino médio – retrocesso inaceitável
E em meio a esse cenário ameaçador para o futuro dessa geração que atravessou parte do ensino médio na pandemia, agora em 2022, todas as escolas terão de se adaptar ao “novo Ensino Médio” que, de acordo com o filósofo e educador brasileiro Demerval Saviani, a reforma será um retrocesso aos anos de 1940, quando havia a delimitação de formação profissional para a geral e formação integral voltada às elites. Além disso, mesmo diante da desigualdade da oferta de internet, ou equipamentos, a proposta orienta que 40% dos conteúdos podem ser oferecidos à distância. Até mesmo a ampliação da oferta de ensino integral está atrelada à Educação à Distância (EaD).
A reforma também precariza os profissionais da educação, ao prever que a maior parte das disciplinas e atividades não precisa de trabalhadores qualificados. A batalha travada em torno da formação de professores para a qualificação da educação pode ser perdida.
Por fim, e não menos importante, a reforma prevê cinco itinerários: os quatro primeiros correspondem àquelas áreas do antigo ensino secundário, e o último é o ensino profissional. Argumenta-se que esses itinerários são para flexibilizar o curso e permitir a escolha dos alunos. Mas isso é outro absurdo porque estariam atribuindo a adolescentes de 15 anos a responsabilidade de definir o seu projeto para a vida.
O entendimento da reforma é que disciplinas como filosofia, sociologia, história, geografia, biologia podem ser facultativas, impedindo as interações em grupo, discussões mais críticas sobre a realidade brasileira e o entendimento de nossas ancestralidades. Ter-se-á como obrigatório nos três anos apenas português e matemática, que não dão conta da complexidade que precisa ser apropriada.
Portanto, o que se vê é uma total contradição entre a realidade imposta pelas desigualdades e aprofundadas na pandemia e as respostas governamentais que seguem na contramão dos direitos e da busca por educação de qualidade para todas as pessoas.
Cleo Manhas é doutora em educação e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)