THE INTERCEPT: O CRIADOR Radical católico da Espanha treinou extrema direita brasileira em 2013 com táticas que elegeram Bolsonaro


Os ultraconservadores católicos brasileiros viviam dispersos pela internet até dezembro de 2013. Seus posts em blogs pouco frequentados não tinham impacto nas conversas e debates do dia a dia. Foi nesse cenário que um cidadão espanhol desembarcou no Brasil: Ignacio Arsuaga era o criador da Hazte Oir (Se Faça Ouvir, em espanhol), uma associação criada para defender o que ele chamava de “valores da família natural”. O que unia Arsuaga e os conservadores brasileiros naquele momento? A defesa intransigente da proibição do aborto sob qualquer circunstância, inclusive em casos de estupro ou de fetos com anencefalia.

Arsuaga veio ao Brasil para uma missão: juntar os militantes locais dispersos e ensiná-los como montar e financiar uma organização nos moldes da Hazte Oir – que, àquela altura, já havia crescido e mudado seu nome para CitizenGo (algo como Vamos, Cidadão, em inglês), numa estratégia para expandir sua pauta globalmente. Arsuaga foi recebido em São Paulo por um padre de Osasco e um casal de militantes antiaborto. Depois daquele encontro, o Brasil não seria mais o mesmo.

Antes mesmo de Jair Bolsonaro aparecer como candidato à Presidência e do bolsonarismo existir, a organização e o financiamento dos ultracatólicos brasileiros foram a semente do mal que arrasou a terra da política brasileira.

Juntos, esses personagens se aproveitaram do rescaldo do caos das ruas de 2013, criaram uma agenda de extrema direita, montaram uma estratégia de combate para a “guerra cultural” que estavam decididos a declarar, ajudaram a derrubar uma presidente eleita e entregaram a Jair Bolsonaro uma plataforma eleitoral enlatada, que saiu dos redutos reacionários católicos diretamente para a campanha eleitoral – e, dali, para a vitória em 2018.

Semanas atrás, o Wikileaks publicou dezenas de milhares de documentos privados da CitizenGo. É a partir destes documentos que essa história pode ser contada.


1RENATA E FELIPE



O primeiro chamado: a farmacêutica conhecida como ‘a mulher que calou as feministas’ e o influenciador combatente ferrenho da ‘ideologia de gênero’.Fotos: Reprodução/Facebook


“Faça sua inscrição para o Workshop com Ignacio Arsuaga, Presidente da Hazteoir – Espanha: Como construir com êxito um movimento social.

Dia 05 de novembro das 19 às 21:30 horas.

Todos os dados são obrigatórios. Inscrições gratuitas.”

Começa assim o anúncio publicado no endereço biopolitca.com.br naquele final de 2013. Não adianta procurar pelo site, ele não existe mais (mas está disponível neste link, arquivado na plataforma Internet Archive). O impacto que aquele pequeno anúncio publicado em um canto obscuro da internet causou na política brasileira, no entanto, é visível e causa estragos até hoje.


Anúncio no site abriu portas para o ideário de Arsuaga no Brasil.


Poucos meses antes daquele novembro de 2013, o Brasil pegou fogo. Não foi por acaso que Ignacio Arsuaga esteve aqui justamente no fim daquele ano. As manifestações de junho tinham rasgado o tecido social do país. Era a chance que os católicos ultraconservadores esperavam para finalmente fazer prosperar suas pautas reacionárias.

Naquela época, o site Biopolítica estava registrado em nome de Renata Gusson Agelune Martins. A farmacêutica tinha virado notícia um ano antes, em 2012, quando apareceu em uma subcomissão do Senado em que se discutiam as políticas públicas do Ministério da Saúde para mulheres. Discursando contra o direito ao aborto, Martins declarou, sem provas, que as pautas feministas no Brasil eram financiadas por interesses internacionais. Ela ficou conhecida na extrema direita como “a mulher que calou as feministas”.

Martins é mulher do influenciador Felipe Nery, que se apresenta no Instagram como “Católico, pai de família e trabalhador na vinha do Senhor no apostolado da Educação”. Em seus posts e pregações, Nery é um dos mais ferrenhos combatentes do que ultraconservadores como ele chamam de “ideologia de gênero” e defensor intransigente da ideia de que uma família só pode ser composta por um homem e uma mulher, definidos como pai e mãe pela biologia. Eram esses os temas essenciais que o casal discutia na época em que criou o site.

Com o chamado para o evento com Arsuaga publicado no Biopolítica, Martins e Nery estavam interessados em saber como os espanhóis tinham se organizado para interferir em políticas públicas e fazer valer suas ideias no país.

2 IGNACIO

Foto: Divulgação/HazteOir.org

Ignacio Arsuaga veio ao Brasil com um propósito: aglutinar e equipar os ativistas de extrema direita brasileiros. A ideia era reproduzir aqui o sucesso da organização espanhola.

Com a Hazte Oir, Arsuaga pautava conversas públicas, influenciava políticos, tinha encontros no Vaticano, levantava dinheiro e conseguia estar sempre em evidência. A Hazte Oir e o Citizen Go eram notícia constante, por exemplo, na Agência Católica de Informações, a ACI Prensa, serviço em cinco línguas e um dos maiores geradores de conteúdo noticioso católico do mundo. Renata Martins ficou mundialmente famosa por lá, apresentada como a Madre Brasileña antiaborto. Foi a ACI Prensa que, em 2013, espalhou notícias falsas como a de que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, ensinava menores a abortar e a se masturbar.

Cartão de embarque de Ignacio Arsuaga.

Criada em 2001, a Hazte Oir foi o ponto de partida do que se tornaria, mais tarde, a CitizenGo, uma versão turbinada da mesma ONG, mas com propósitos diferentes. A CitizenGo coletava assinaturas para abaixo-assinados a serviços de pautas que até hoje seus defensores chamam de “pró-vida”, o que basicamente significava tirar o poder das mulheres de decidirem sobre seu próprio corpo em causas como a do aborto, por exemplo.

Em seus anos de militância, a Hazte Oir se aproximou do Vaticano a ponto de Arsuaga conseguir marcar encontros com o próprio papa Francisco. Com acesso a cardeais importantes da Santa Sé, pegava deles instruções sobre como internacionalizar o movimento. A organização ouviu do monsenhor Carrasco de Paula, então presidente do Pontifício Conselho para a Vida, que a CitizenGo deveria focar em “unir os movimentos pró-vida do mundo”, para que as mesmas pautas fossem tocadas em países diversos. Do monsenhor Antoine Camilleri, subsecretário de Estado da Santa Sé, a ONG recebeu o conselho de montar grupos de pressão na ONU e na OEA. E assim fez.

Em uma das apresentações que trouxe ao Brasil em 2013, Arsuaga ensina como construir uma organização social do zero. Simplificando, o modelo gira em torno de identificar os inimigos, recolher e-mails de apoiadores, captar recursos e fazer lobby e uso intensivo de redes sociais para pautar a política. Em outro documento, usado para treinar equipes, estão as bases do que eles chamavam de “guerra cultural”, expressão que seria largamente usada por influenciadores de extrema direita no Brasil durante a campanha de Bolsonaro.

Protestos da ‘Hazte Oir’ eram turbinados com conselhos de líderes católicos contra o que chamavam de ‘leis ideológicas da esquerda’– caso de leis sobre aborto, violência de gênero e direitos LGBTQI+.Foto: Marcos del Mazo/LightRocket via Getty Images

Entre as bases da tal “guerra cultural” estão combater a ideia universal de direitos humanos e promover o discurso de ódio a minorias e ao “lobby LGBT”. Em mais um documento, “abortistas e lobby gay” são identificados como “cultura da morte”. Em outro, defendia-se a ideia de que as sociedades usam a aids como desculpa para vender preservativos (e assim frear o nascimento de crianças). Em um quarto, havia críticas ao “politicamente correto” e à masturbação.

Os inimigos apontados nos treinamentos são o comunismo, a ONU e financiadores como George Soros. Todos estariam unidos em um lobby pelo globalismo que deseja destruir as famílias e implantar uma espécie de ditadura gay mundial. Soa como o Brasil que conhecemos a partir da campanha e do governo de Bolsonaro? Sim, porque é uma cópia escarrada da agenda dos espanhóis. Até mesmo o “kit gay” que Bolsonaro levou ao Jornal Nacional durante a campanha de 2018 já tinha sido explorado pela Hazte Oir em 2013. Na Argentina.

3. OS PADRES JOSÉ EDUARDO E PAULO RICARDO

O padre da diocese de Osasco e o amigo de Olavo de Carvalho.Fotos: Reprodução/Facebook


No evento de treinamento de Arsuaga no Brasil, outra figura que se tornaria importante na militância bolsonarista foi anunciada. Tratava-se do padre José Eduardo. No release do evento, publicado pelo ACI Prensa, ele é apresentado como “padre da diocese de Osasco e membro da comissão em defesa da vida do regional Sul 1 da CNBB”, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Eu cheguei ao padre José Eduardo por acaso. O site Biopolítioca, mantido à época pelo casal Renata e Felipe, tinha em seu rodapé a seguinte informação: “Copyright © 2014 – Observatório Interamericano de Biopolitica”. Decidi ir atrás do observatório e descobri seu CNPJ, registrado em nome de Felipe Nery. E o endereço: Avenida Padre Vicente Melillo, 831. Não precisou muito para que o Google Maps me mostrasse que o endereço da empresa fica em uma igreja.

Encontrei o padre dessa mesma igreja no Instagram, em foto de 15 de março de 2105, com o cantor, compositor e radical de direita Lobão em uma manifestação para derrubar a então presidenta Dilma Rouseff. O laço com a CitizenGo de Ignacio Arsuaga também estava ali: o padre José Eduardo, em Brasília, entregando um abaixo assinado com o logotipo da organização, três dias depois da manifestação.


Fotos: Reprodução/Instagram

Em nova busca pelo nome do padre no Google, cheguei a um seminário de biopolítica do qual ele participou em dezembro de 2013, poucos dias depois do treinamento com Arsuaga. Com ele no seminário, em outra foto, estava o padre Paulo Ricardo, amigo de Olavo de Carvalho e um influente evangelizador “pró-vida” que, mais tarde, se converteria em pregador bolsonarista de primeira ordem, arregimentando um milhão de seguidores no Instagram.

Fotos: Reprodução/Redes sociais

Paulo Ricardo foi o tutor do ativista católico de extrema direita Allan dos Santos, do site bolsonarista Terça Livre, quando ele foi seminarista. Hoje autoexilado nos Estados Unidos, Santos está implicado em diversos processos no Brasil – o mais recente é uma denúncia do Ministério Público Federal, o MPF, contra ele por ameaças ao ministro do Supremo Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o TSE.

4. ALLAN DOS SANTOS

Foto: Alessandro Dantas/PT no Senado

Não há, nos documentos da Wikileaks, a lista dos participantes do treinamento de Arsuaga no Brasil. Pode-se dizer sem medo de errar, no entanto, que seu conhecimento foi espalhado e rendeu frutos. O espanhol ensinou como as organizações poderiam levantar dinheiro aproveitando suas redes. O esquema funcionava basicamente a partir de listas de e-mails, com as quais as entidades poderiam pedir apoio financeiro para levar suas pautas adiante. As técnicas foram depois atualizadas e sofisticadas, inclusive com uso do software Sales Force, uma das mais poderosas máquinas digitais de relacionamento com clientes do mundo.

O sistema funcionava espetacularmente bem. Uma tabela que está no acervo da Wikileaks mostra que, em apenas nove meses, de dezembro de 2013 a setembro de 2014, a CitizenGo levantou 530 mil euros apenas enviando e-mails para uma base de destinatários de língua portuguesa. A lista, que começou com 2.302 inscritos, teria, ao final daquele período, 239.528 pessoas. Entre os títulos dos e-mails estavam “A você, que é um ‘reacionário estúpido’…” e “Se (nós) não fizermos algo, vão matá-la…”.

Padre Paulo Ricardo e Allan dos Santos (ao centro): ele foi tutor do jornalista quando seminarista, muito antes do bolsonarismo. Foto: Reprodução/Facebook

Com seus planos de expansão global – como mostra o planejamento 2013-2014 do grupo: “Lanzar CitizenGO (HO en todo el mundo: español, inglés, portugués, francés, alemáy n, italiano, polaco, ruso” – Arsuaga voou para o Equador, onde participou de um evento chamado Congresso Pró-Vida. Nele estava também Felipe Nery, o influenciador ultracatólico brasileiro. Mas o legado do espanhol deu resultados no Brasil.

No inquérito que apurou a participação de militantes de extrema direita nos atos antidemocráticos, a Polícia Federal, a PF, relatou: “Durante a busca e apreensão executada na residência de Allan dos Santos, foi encontrada uma planilha de doadores do canal Terça Livre, via plataforma Apoia.se, contendo mais de 1.700 linhas. Entre os 16 primeiros doadores, há um servidor público do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (Raul Nagel) que realizou 27 transações que totalizaram R$ 40.350. Giuliano Carvalho, servidor da Secretaria da Fazendo do Rio de Janeiro, realizou 31 transações que totalizaram R$ 15.500. Christiano Cavalcante (servidor do Senado Federal) doou, em 3 transações, R$ 15.000. Já a servidora do BNDES Ana Maria da Silva Glória doou diretamente na conta de Italo Lorenzon Neto (sócio do Terça Livre) ao menos R$ 70.000”.



A PF recomendou que a Procuradoria-Geral da República, a PGR, desse continuidade à investigação. O procurador-geral Augusto Aras, no entanto, mandou arquivar o pedido. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, acatou. Mas, em seguida, determinou a abertura de um novo inquérito sobre o assunto, em que Jair Bolsonaro mais tarde foi incluído como investigado a pedido do TSE.

Renata Gusson Martins, do site Biopolítica, foi relacionada com o grupo de pessoas que atacaram a avó da criança de 10 anos, estuprada, que precisou passar por um aborto legalmente previsto no Espírito Santo. Na ação, ocorrida setembro do ano passado, foram usados dados sigilosos e o nome da ministra Damares Alves.

Rodrigo Rodrigues Pedroso, um dos nomes que assinam os artigos inaugurais do site de Martins e de seu marido em 2013, foi convidado por Damares para integrar o grupo que vai revisar a política nacional de direitos humanos.

Eles estão todos por aí.

leandro.demori@​theintercept.com@demorifonte: the intercept

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