O médico mais famoso do Brasil passou da conscientização sobre o HIV à divulgação sobre a pandemia, hoje fora de controle no país. “Os EUA servem para mostrar como a política pode influir em uma pandemia, porque durante meses tiveram o maior número de mortes por dia”.
O oncologista e divulgador científico Dráuzio Varella, em seu escritório em São Paulo, no dia 24 de março. LELA BELTRÃO
O médico mais famoso do Brasil é neto de um pastor galego que aos 12 anos embarcou rumo à terra prometida para sustentar sua família na Espanha. Drauzio Varella (São Paulo, 77 anos) é uma instituição. Esse oncologista que, quando surgiu a Aids, apareceu na mídia para conscientizar sobre aquela epidemia, é a grande referência em saúde pública para dezenas de milhões de brasileiros que o acompanham na televisão, no YouTube e na imprensa. Com a pandemia fora de controle, o Governo em crise, milhares de doentes na fila da UTI e o Brasil como epicentro mundial do coronavírus, esse médico alto e magro que corre maratonas reflete sobre o poder dos políticos nesta crise e sobre a atitude do presidente Jair Bolsonaro. Com a sala ventilada e mantendo uma distância de segurança, ele só tira a máscara para as fotos em seu escritório de São Paulo.
Resposta. No começo, havia muito preconceito [em relação à Aids]. As pessoas achavam que você podia se contagiar compartilhando um banheiro ou em um ônibus lotado. Logo ficou claro que a transmissão era por relações sexuais. Agora há mais medo porque você se infecta em um contato casual.
P. Você tomaria a vacina da AstraZeneca?
R. Foi a que tomei. Aqui você não escolhe. Aplicam a que calhar no dia.
P. O Brasil, uma potência em saúde pública, tornou-se uma ameaça mundial porque pode ser um celeiro de novas variantes do coronavírus. Quanto pesa o fator Bolsonaro?
R. No início, eu mesmo não tive noção de que seria grave. Quando chegou à Itália, entendemos a ameaça e as medidas ficaram claras: máscara, isolamento. O que aconteceu no Brasil? O presidente disse publicamente —não consigo entender o motivo— que, se isolássemos as cidades, provocaríamos uma crise econômica muito séria e que mais pessoas morreriam de fome do que devido à epidemia. Se tivesse dito: “Vamos proteger a economia, os mais jovens têm de trabalhar, mas, por favor, não saiam sem máscara, não podem se aglomerar, porque senão a economia não se recupera...”, teríamos transmitido uma informação homogênea. Mas ele começou a pregar o contrário, comportamentos que contribuem para disseminar a epidemia. Tivemos uma mensagem dupla e antagônica. Foi determinante. Criamos uma bola de neve que desembocou na situação atual.
P. Os Estados Unidos são um exemplo do poder dos políticos diante de uma pandemia, em vista da redução de casos e da aceleração da vacinação desde que Joe Biden é presidente?
R. [Os EUA] servem para mostrar como a política pode influir em uma pandemia, porque durante meses tiveram o maior número de mortes por dia.
P. O historiador israelense Yuval Noah Harari escreveu em um artigo sobre a pandemia no Financial Times que a ciência não pode substituir a política, que o político é que deve levar em conta as considerações médicas, econômicas e sociais para definir uma política integral. No Brasil e nos EUA, foi a política que falhou ou há outros responsáveis?
R. A maior responsabilidade é do líder máximo. Mas é um conjunto. A população, que decretou por sua conta que a epidemia tinha acabado e foi para as ruas; prefeitos e governadores, que adotaram políticas menos restritivas; o Senado e a Câmara, que se ausentaram da discussão.
P. Bolsonaro deveria ser denunciado por crimes contra a saúde pública?
R. Não conheço a parte legal, mas não é possível que isto fique sem nenhuma consequência.
P. Harari sustenta que a negligência e irresponsabilidade dos governos de Donald Trump e de Bolsonaro causaram centenas de milhares de mortes evitáveis. O senhor compartilha esse diagnóstico?
R. Eu concordo. Não sei quantas mortes poderiam ter sido evitadas, porque é um vírus agressivo. Há países que responderam rapidamente e não puderam evitar as mortes, mas tiveram muito menos. Conseguiram evitar catástrofes como a brasileira e a americana.
P. O Brasil tinha vantagens. Conseguiu conter a Aids, tem um programa de vacinação potente, um sistema de saúde que chega a todos os cantos. Todo isso foi insuficiente diante dos líderes políticos brasileiros?
R. Na Espanha, no Reino Unido e em Portugal nem tudo correu bem, mas havia uma coordenação central assumida pelos governos. Aqui caiu o ministro da Saúde, entrou outro que ficou um mês e depois veio um militar sem nenhuma experiência em saúde. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes tem um sistema de saúde gratuito como o nosso. Não é uma tarefa simples, mas o sistema está organizado. O programa nacional de imunizações é um dos que mais vacinam no mundo. Tem 38.000 postos, a sala, o frigorífico, o técnico treinado para vacinar, uma enfermeira que supervisiona... Qual é o problema? Que começamos a campanha sem ter vacinas. Nos anos setenta, o Brasil vacinou 18 milhões de crianças contra a poliomielite em um dia. E agora? Entre 70.000 e 80.000 pessoas por dia, porque não há vacinas.
P. Por que não há?
R. Faltou impulso político. Deveríamos ter nos preocupado em comprar vacinas quando os outros países compraram. Quando decidimos ir procurá-las, já não havia. Mudaram a chefia do Ministério da Saúde, colocaram militares e não técnicos, e tudo ficou perdido.
P. A luta contra a Aids foi um sucesso porque as autoridades se uniram em um esforço coordenado?
R. Apesar dos preconceitos de europeus e americanos, que diziam que não tinha sentido dar inibidores de protease aos pobres porque o tratamento era complexo e eles não o fariam, o Ministério da Saúde enfrentou as multinacionais, ameaçando quebrar patentes. Decidiu-se que todos os brasileiros com Aids seriam tratados. Em 1995, tínhamos a mesma prevalência de HIV que a África do Sul. Hoje eles têm 10% da população adulta infectada. Nós, 800.000 pessoas. Pela taxa da África do Sul, seriam 17 milhões.
P. O senhor acredita que a grande sequela da pandemia será a saúde mental.
R. Com a epidemia, dois transtornos psiquiátricos, a ansiedade e a depressão, aumentaram. Os centros de atendimento psicossocial tratam apenas as grandes psicoses. Não há psicoterapia para quem está deprimido ou em uma crise de ansiedade. E se você não trata os transtornos no início, eles pioram. Precisarão de atendimento psiquiátrico, medicamentos, tratamentos longos.
P. Como combater a desconfiança em relação às vacinas, aos ensaios clínicos?
R. Esses movimentos contra as vacinas têm de ser processados legalmente. Você não pode deixar que falem como se fossem autoridades. Quando era estudante, visitei uma enfermaria de varíola. Não ocorre nenhum caso de varíola no mundo há décadas. Como se conseguiu isso? Com a vacina! Alguém vacinado na infância, que não teve poliomielite, varíola, que não tem sarampo, e agora fala contra as vacinas... É como induzir a população ao suicídio.
P. O que fazer com a concentração de vacinas por parte dos países ricos? É egoísmo?
R. Claro que é. Não se justifica comprar vacinas em um número quatro vezes maior do que o suficiente para sua população e ficar com elas enquanto outros países não têm dinheiro para comprá-las. Não é o caso do Brasil, que tem dinheiro. Por que não emprestar vacinas e recebê-las de volta depois? Deveria haver um acordo internacional intermediado pela OMS.
P. Como é possível que no Brasil quase ninguém fume?
R. Televisão, minha filha, televisão. Nenhum outro país tem um canal como a TV Globo, que chega ao país inteiro. Ela levou médicos à televisão para mostrar a verdadeira cara [do fumo], para contar que o tabaco é uma tragédia. Quando vou à Europa, fico chocado ao ver como fumam, como pessoas cultas, inteligentes, que tiveram acesso a todas as informações, fumam.
P. A televisão como instrumento de saúde pública.
R. É o grande instrumento. Mesmo agora, na pandemia, a maioria se informa pela televisão. Eu mesmo fiz duas séries sobre o tabaco no Fantástico, e nas duas mostrei como é um pulmão normal e como é um pulmão negro. E isso causa um impacto enorme na população. E aí vem todo o resto.
fonte: https://brasil.elpais.com/