Pesquisa inédita revela que 46% dos brasileiros concordam com ao menos uma mentira relacionada à vacinação. De Bolsonaro aos grupos de WhatsApp, prolifera-se a desinformação na pandemia, ao custo de milhares de mortes
Por Amanda Gorziza, na Piauí
Nádia Bandeira, médica gaúcha de 56 anos, participa de um grupo no WhatsApp só com mulheres endocrinologistas. Nesse espaço, elas conversam sobre o cenário da Covid-19 e trocam informações sobre a doença. Mas boa parte do volume de postagens no grupo não traz informação – ao contrário, as médicas costumam compartilhar conteúdos falsos sobre a pandemia que recebem de conhecidos – e alguns despertam indignação nas participantes. Muitas vezes, as médicas ficam até em dúvida sobre o que é verdadeiro ou não, e Bandeira costuma falar com um colega pneumologista para se certificar. Nos últimos dias, o principal assunto discutido, não apenas no grupo das médicas, mas também no consultório, são as vacinas contra Covid-19. “Recebo vários pacientes que vêm com as ideias das fake news. Eles dizem: ‘não vou fazer a vacina porque estão inserindo um microchip dentro das pessoas, e esse será o controle total da humanidade’”, relata. Ela diz que procura explicar a seus pacientes o que é verdade e o que não é, mas ainda encontra resistência por parte de muitos.
Assim como Nádia Bandeira, vários outros brasileiros são expostos diariamente a informações falsas sobre vacinas – mas, diferente da médica, muitos acreditam nelas. Pesquisa inédita do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) revela que 46% dos entrevistados, ao serem questionados pelos entrevistadores sobre conteúdos falsos, concordam com pelo menos uma das fake news sobre as vacinas contra a Covid-19. As seis frases mentirosas apresentadas trazem as seguintes hipóteses: é possível se infectar com o coronavírus a partir de vacinas; há tratamentos alternativos tão ou mais eficientes que os imunizantes; a vacina modifica o DNA da pessoa; a vacina carrega, na verdade, um microchip que será implantado nos indivíduos; as vacinas podem causar autismo, provocar câncer ou transmitir HIV; as vacinas têm na composição células de fetos abortados e tumores. Os entrevistados responderam se concordavam ou discordavam, totalmente ou em parte, com essas seis afirmações falsas. E as inverdades sobre as vacinas alcançaram, assim, a concordância de quase metade deles.
A crença em fake news sobre vacinas está distribuída por todas as regiões do Brasil e por vários grupos sociais, embora seja mais frequente em alguns deles. Do mesmo modo, também estão mais disseminados entre pessoas que cursaram até a antiga quarta série do ensino fundamental (54%); em seguida, vem o grupo que, no máximo, concluiu o ensino fundamental (51%). Mesmo no grupo que concluiu o ensino superior, 32% acreditam em pelo menos uma das frases falsas sobre a vacina. Os boatos alcançaram a adesão de 54% dos entrevistados evangélicos e de 44% dos católicos.
Dos entrevistados com renda mensal familiar de até um salário mínimo, 52% acreditaram em algum boato. Entre quem tem renda familiar superior a cinco salários mínimos, 27% concordam com as fake news. O Nordeste tem a maior proporção de entrevistados que acreditam nas frases falsas (57%), e o Sudeste, a menor (40%). No corte por tamanho de município, a desinformação encontra maior eco em cidades de até 50 mil habitantes (49%). Em todo o país, foram entrevistadas 2.002 pessoas face a face de 19 a 23 de fevereiro de 2021. O nível de confiança é de 95%, e a margem de erro máxima estimada é de 2 pontos percentuais para mais ou para menos.
A frase que alcançou maior nível de concordância, 26%, foi “há tratamentos alternativos tão ou mais eficientes que as vacinas contra a Covid-19”. Especialistas já afirmaram que, até o momento, não existe alternativa terapêutica comprovada para prevenir a doença. Além disso, 24% dos entrevistados responderam que concordavam com a afirmação falsa de que alguns imunizantes contra a Covid-19 podem infectar as pessoas com o coronavírus. Esse dado é incorreto, pois ou as vacinas não contêm o vírus ou ele está inativo, assim, elas ensinam o sistema imunológico a produzir anticorpos para combater o Sars-CoV-2
Boatos sobre os imunizantes se intensificaram no segundo semestre de 2020, em meio às desavenças políticas relacionadas com a vacina CoronaVac, produzida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, e à crescente desconfiança das pessoas com as instituições. O presidente Jair Bolsonaro tem estimulado a desinformação, defendido o tratamento precoce e minimizado a doença – e isso multiplicou ainda mais os boatos, muitas vezes orquestrados por grupos antivacina e apoiadores do presidente.
Desde o início da pandemia, a Agência Lupa, veículo de verificação de informações, já checou pelo menos noventa conteúdos relacionados às vacinas contra Covid-19. Nos últimos meses, o debate digital sobre o assunto se intensificou e, com isso, as fake news também. “Em 2021, estamos verificando bastante conteúdo sobre vacinação, desde questões relacionadas à eficácia, à sinofobia [preconceito com chineses] e também às questões políticas”, afirma Natália Leal, diretora de conteúdo da agência. Neste mês, a Lupa já verificou nove conteúdos falsos sobre vacinas. Um deles afirma que governadores estariam escondendo imunizantes para desestabilizar o governo Bolsonaro, o que não tem fundamento, já que o próprio Ministério da Saúde orientou que os estados fizessem reservas de vacinas para a aplicação da segunda dose da CoronaVac. Neste domingo (21), foi autorizado que os imunizantes armazenados possam ser usados imediatamente como primeira dose para ampliar o número de vacinados.
De acordo com Natália Leal, a desinformação ocorre em ondas, já que está ligada com os assuntos debatidos no momento, principalmente nas redes sociais. Desde o início da pandemia, as ondas já percorreram diferentes temas, como origem do vírus, formas de prevenção, uso da hidroxicloroquina e agora miram as vacinas. “As narrativas vão sendo formadas de acordo com os debates que estão acontecendo.” Leal destaca que, além da crença por parte de alguns grupos de que a vacina não funciona e não é segura, há um pensamento errôneo de que a doença não é tão grave. “Há também fatores externos, como questões políticas, que estão influenciando a crença das pessoas em uma eficácia ou não da vacina, e não somente as questões relacionadas à saúde.”
A britânica Claire Wardle, cofundadora e diretora da ONG First Draft, é referência internacional no combate à desinformação. Foi uma das apoiadoras da implementação no Brasil do Comprova, projeto que reúne jornalistas de 28 veículos de comunicação, incluindo a piauí, para verificação de notícias. De acordo com a pesquisadora, sempre se soube que a desinformação causava danos, mas às vezes era difícil vê-los imediatamente. “Quando se trata de desinformação em saúde, é muito claro que elas podem levar a danos muito graves. Potencialmente, podem fazer com que menos pessoas sejam vacinadas, o que pode ter implicações muito sérias para países como o Brasil ou os Estados Unidos.”
O estudo realizado pelo Ipec também revelou que 26% dos brasileiros acreditam totalmente ou em parte que as vacinas contra Covid-19 não são seguras. E 18% dos entrevistados não se disseram interessados no imunizante: discordaram totalmente ou em parte da afirmação “pretendo tomar a vacina assim que ela for disponibilizada para minha faixa etária”. Um dos motivos citados por essas pessoas para não se vacinar é a insuficiência de testes dos imunizantes. “Vemos um número crescente de pessoas que não confiam nas instituições e este é um dos efeitos colaterais das desinformações”, afirma Wardle.
Com a pandemia, a vida das pessoas virou de cabeça para baixo. Muitas perderam amigos e familiares para a doença; outras foram demitidas de seus empregos. Em momentos de vulnerabilidade e medo, os indivíduos estão mais suscetíveis a serem influenciados por informações incorretas. “Como humanos, gostamos de consumir conteúdo que nos faça sentir algo. E muitas dessas desinformações são eficazes porque afetam as pessoas em um nível emocional”, explica Wardle. Uma das formas de responder a isso é, avalia Wardle, responder de modo claro aos questionamentos das pessoas sobre os imunizantes – e o jornalismo tem papel fundamental nisso. “Uma vez que as pessoas tenham essas perguntas respondidas, é mais provável que sejam vacinadas.”