TARAUACÁ: HISTÓRIA DE “CARRAPICHO” E OS DESBRAVADORES HOMENS DO CAN NOS CÉUS DO ACRE E DA AMAZÔNIA, NAS ASAS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA

Gilberto A. Saavedra – Rio de Janeiro

TARAUACÁ – AC (Palco da escrevedura)
Município brasileiro do Acre com o nome de origem indígena, com o significado de “rio dos paus e das tronqueiras”.
HISTÓRIA DE “CARRAPICHO” E OS DESBRAVADORES HOMENS DO CAN NOS CÉUS DO ACRE E DA AMAZÔNIA, NAS ASAS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA.

Esta é, apenas, um pouco da história de José Galera dos Santos; homem do povo que, ficou carinhosamente conhecido no município de Tarauacá – Acre, como “CARRAPICHO”, personagem folclórico da cidade.

Um cidadão brasileiro simples, que deu o seu nome ao aeroporto dessa hospitaleira cidade acreana.

Há 40.139 habitantes em Tarauacá (Ano – 2017 – estimativa IBGE).

A distância entre Tarauacá e Rio Branco, capital do Acre é 409 Km (por estradas) e 384 Km em rota aérea (linha reta).

Mas o que fez esse brasileiro de tão relevante em Tarauacá e, em que época, para que merecesse ter o seu nome (ele tinha o afeto do povo) no aeroporto da cidade?

Sabe-se que, ele chegou ao município para uma apresentação circense, mas que, resolvera ficar nesse novo lugar.

Para melhor entender esta época, contarei essa história desde o seu início, com todos os seus coadjuvantes importantes que, conviveram esse período.

Eu, tive o aprazimento de participar desse memorável tempo, em meados dos anos de 1950, durante os meus 6/7 até os 8 anos de idade em Tarauacá.

Por isso, eu me considero, uma testemunha ocular que (depois de adulto), pesquisei para melhor entender, o que eu na qualidade de uma criança, jamais poderia compreender uma parte dessa bela história patrocinada pelo legendário “Carrapicho”.
Carrapicho. Foto: Blog Tarauacá Notícias
Mas, para falar desse famoso personagem de Tarauacá e de sua história, eu não poderia deixar de fora a imprescindível atuação da aviação aérea (civil e militar) no Acre.

Em especial à FAB (Força Aérea Brasileira) e suas tripulações do CAN (Correio Aéreo Nacional), pois foi o desvelo de Carrapicho (durante anos e anos), a esses bravos aviadores nos céus acreanos, em especial ao da FAB que, fez nascer essa marcante história.


AMAZÔNIA E O TRANSPORTE FLUVIAL

Todos nós sabemos que, o Brasil é um país de dimensão continental; o espaço de norte a Sul é de leste a oeste é imenso.

O isolamento de um lugar distante, a um centro mais desenvolvido, sempre foi, e ainda é, um grande problema, principalmente àquelas pessoas que vivem na Amazônia isoladamente em povoações ribeirinhas.

Nessa região, por exemplo, em uma grande parte dessa imensa extensão de terras, na data atual (2017), ainda predomina essa exclusão social.

O transporte fluvial, como o único meio de interligação, foi e é ainda essencial para essa região, através de sua gigantesca bacia de hidrovias, porém, muito lento e sem o amparo vital à navegação.

Em muitos casos, há um transporte sem conforto (a maioria); sem privacidade; capacidade de passageiros acima do permitido, ocasionando incontáveis vezes o naufrágio da embarcação.

Devido o gigantesco tamanho da Amazônia, chegar ao destino era e continua (não mudou nada) um sacrifício para quem precisava viajar.


ISOLAMENTO DO INTERIOR DO ACRE COM RIO BRANCO - CAPITAL

Antes da criação de campos de aviação no Acre, todo o interior do estado era completamente isolado da cidade de Rio Branco, capital acreana.

O único meio de transporte daquela época era o que lhe fora dado pela mãe Natureza, o fluvial.

Mas como os rios acreanos (a maior parte), correm entre si paralelamente em seus leitos, em direção ao rio Solimões, a longinquidade entre capital e interior, torna-se difícil e longa.

Esse empecilho fluvial, criado pela geografia da natureza do Acre, provoca um transtorno ao estado.

Exceto aos municípios de Brasileia, Xapuri, Epitaciolândia, Porto Acre e Assis Brasil, todos banhados pelo rio Acre, o mesmo da capital.

Havia escassez de gêneros de primeiras necessidades.

Alimentos importados, remédios; além de não ter como deslocar rapidamente um paciente enfermo para um centro mais desenvolvido.

O abastecimento fluvial lento procedente de Belém (mas fundamental), era, e é ainda realizado durante às cheias dos rios.

A implantação de um transporte aéreo (tão sonhado pelos acreanos), era necessário para o escoamento de produtos básicos ou à remoção rápida de pessoas doentes que careciam de um tratamento de saúde mais prudente em Rio Branco ou no Sul do país.


TAQUARY – PRIMEIRO AVIÃO EM RIO BRANCO

Só a partir de 1936, o primeiro avião chega ao Acre.

Era um hidroavião (equipado com dois botes); ele realizou uma amerissagem (pouso de aeronave em superfícies aquáticas) no rio Acre, na capital acreana.

Seu nome: TAQUARY (batizado pelo povo), um avião monomotor modelo Junkers-W-34 de fabricação alemã.

Na chegada da aeronave, houve uma grande recepção por parte das autoridades locais e o povo, em geral, já ansioso, por causa de frustações anteriores, quando um avião anfíbio da Panair, programado para amerissar no rio Acre, mas não o fez.

Passou duas vezes voando bem baixinhos por cima das cabeças das pessoas que, estavam às margens do rio à espera do avião.

A aeronave ganhou altitude, seguiu um estirão no espaço e sumiu no horizonte, para decepção de todos os presentes ao ato. (Fonte jornal “O Acre” da época - 1936.)

Embora o avião Taquary da Condor tenha chegado primeiro ao Acre, mas quem inaugurou a primeira linha aérea com roteiro fixado (de 15x15 dias) de Rio Branco ao sul do país foi a Companhia da Panair.

A Condor depois da Segunda Guerra Mundial passou a se chamar Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul com grandes serviços prestados ao nosso estado, Amazônia e ao país, juntamente com a Panair e Vasp.

Um ano depois (em 1937) do avião Taquary chegar ao Acre pela primeira vez, é inaugurada a primeira pista de pouso de Rio Branco pelo o novo interventor Manoel Epaminondas Martins, sonho que Martiniano Prado não conseguiu concretizar (já tinha ido embora do Acre) pois até então, só os aviões do tipo anfíbio chegavam a Rio Branco, capital do Acre.

Os trabalhos iniciais desse campo de aviação, foram executados por um mutirão de acreanos que, atenderam de livre e espontânea vontade ao chamado, ainda (em 1935) no governo do interventor federal Martiniano Prado.

Tempo depois, foram implantadas várias pistas de pouso pelo o interior do estado do Acre.

Foi um grande acontecimento naquela região do Acre, trazendo proveitosos benefícios para o povo interiorano com tamanha rapidez, até então considerados impossíveis sem o avião.

Mas o maior benefício para o acreano, estava por vir.


CAN (CORREIO AÉREO NACIONAL NO ACRE)

No ano de 1947, o CAN inicia os seus voos para o então Território Federal do Acre.

O roteiro da linha faz ligar as seguintes cidades: iniciando pelo Rio de Janeiro - São Paulo - Três Lagoas - Campo Grande - Cuiabá - Cáceres - Vila Bela - Forte Príncipe - Guajará Mirim - Porto Velho - Rio Branco - Sena Madureira - Feijó - Tarauacá - Cruzeiro do Sul - Xapuri e Basileia.

Com o surgimento do CAN (Correio Aéreo Nacional) ao Acre, o interior ficou ligado quinzenalmente a Rio Branco e ao Sul do país, graças ao então Major Eduardo Gomes, depois, Marechal do Ar e, como Brigadeiro, um dos mentores dessa idealização (do CAN), sendo proclamado pelo elogiável feito, como o “Patrono da FAB”.

Os aviões que chegavam faziam uma escala de 15 em 15 dias, pelo o interior do Acre, transportando cargas (de qualquer tipo); remédios; assistência médica e livros para os municípios, além de passagens grátis para os mais desprovidos de recursos.

Atualmente (2017), a maioria dos municípios estão interligados entre si pelos tráfegos aéreo e rodoviário.

Aproveito essa narrativa, para chamar a atenção, de novos brasileiros (jovens), que desconhecem os importantes serviços prestados à “Pátria”, por esses valorosos homens do ar.

Imbuídos dos melhores propósitos deram às suas vidas durante muito tempo, uma missão de valor na sociedade (ajudando os mais necessitados), sem sombra de dúvidas, numa causa nobre que merece o reconhecimento dos brasileiros.

Muitos foram acometidos de patologias endêmicas da região (malária; infecções associadas à água como hepatite ou febre tifoide; verminoses e a leptospirose); além das mortes em acidentes aéreos, nas quedas dos aviões durante essa espinhosa missão de desbravar o interior brasileiro.

Um lugar sempre esquecido pelo poder público da União, voltado somente, sempre para a extensa costa marítima (litoral), deixando a gigantesca Amazônia num abandono total.

Mesmo com poucos recursos (instrumentos) técnicos de bordo, esses aviadores cumpriram essa grande façanha de integração nacional nas asas da FAB, tendo como orgulho da aviação, um brasileiro - Alberto Santos Dumont, “O pai da aviação”.

A Aeronáutica através de suas aeronaves da Força Aérea Brasileira prestou um fundamental serviço aos irmãos brasileiros do interior de nossa nação, com os voos dos seus aviões anfíbios PBY Catalina – o ‘pata choca’ (desde 1958) e o Douglas C-3 e 47 do CAN (Correio Aéreo Nacional) num trabalho incessante e primordial, de extrema essencialidade ao Brasil, principalmente à nossa gigantesca Amazônia.

O povo acreano no gesto de agradecimento à FAB, pelos seus voos nos céus do Acre, homenageou os homens do CAN com a seguinte frase.

 “CORREIO AÉREO NACIONAL:
GLÓRIA PACÍFICA DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA.”

Também foi de suma importância para o Acre e Amazônia os serviços aéreos das extintas companhias da Cruzeiro do Sul, da Panair do Brasil e Vasp, as quais também operavam em suas linhas os Catalina e os DC-3 e C47.

CARRAPICHO E OS DESBRAVADORES AVIADORES DO CAN NOS CÉUS DO ACRE

Um homem brasileiro, modesto, chamado de José Galera dos Santos que, com sabedoria, reconheceu logo o grande e espinhoso trabalho dos bravos homens do CAN.
Carrapicho. Foto: Blog Tarauacá Notícias
Um artista de cenas circenses, desses muitos que vagueiam pelas plagas interioranas, mostrando o seu trabalho para sobreviver e angariando plateias, principalmente dos mais jovens ou crianças.

José Galera ao chegar a Tarauacá, conseguira tudo isso: carinho; amizade e o respeito do taraucaense, pela sua despretensiosa arte como artista de circo, mas de profícua relevância cultural para o município.

José Galera, apaixonou-se tanto pela cidade que, resolvera ficar.

Ficou e não foi mais embora do novo lugar.

Rapidamente se tornara uma pessoa querida em Tarauacá, pelo seu modo reverencioso com todos.

Já como funcionário do aeroporto de Tarauacá na função de guarda campo da pista de pouso, carinhosamente chamado de ‘Carrapicho’.
Com o seu jeito alegre, brincalhão e inteligente, não perdeu o ensejo de homenagear os aviadores do CAN quando de suas chegadas em Tarauacá de quinze em quinze dias.

Com o mínimo de tempo de estadia da tripulação no aeroporto, Carrapicho, sagazmente, fazia a festa no próprio ambiente, durante o tempo necessário do desembarque e embarque das cargas da aeronave.

Eu como testemunha ocular, de uma parte dessa bela história em meados dos anos de 1950/2/3, ainda criança, tive o prazer de conviver com uma parte desse magnífico tempo patrocinado pelo carismático ‘Carrapicho’.

Na data da chegada do avião, lá estava eu (ainda garoto), mas me recordo como se fosse hoje, das brincadeiras do Carrapicho com suas pernas de pau, o megafone ou sua corneta, cantando e brincando com o público; às vezes com o seu tradicional uniforme da Aeronáutica, com suas medalhas no peito.

O aeroporto, também ficava repleto de pessoas para saber quem chegava e quem partia; a recepção aos aviadores era calorosa.

Tarauacá era governada pelo o então Prefeito Municipal Arnaldo de Farias; esposo da professora Creusa.

Ainda me lembro dos nomes de algumas famílias tradicionais: muitos árabes (turcos, sírios, libaneses), etc. Nagip, Said Bachir da Casa Samaritana; F Baima; Muni Bissot; Raimundo e Humberto turco; Jose Higino; Jofre Catão e sua farmácia; Leal; Pedro Correia; família do Jonas Lopes (da padaria) B. Roque; Baima, etc.

José Galera preparava um grande banquete à tripulação da FAB.

Uma farta mesa de refeição com doces e o cardápio da cidade, além das mais variadas frutas da região, incluindo o gigante e gostoso abacaxi de Tarauacá; uma grande bancada cheia de iguaria apetitosa que, dava água na boca de qualquer um dos visitantes ao evento.

Com o calor dos participantes ao ato de boas-vindas, todos se envolviam nessa festa quinzenal.

Carrapicho sendo um atendente solícito, logo ganhou uma grande admiração das tripulações da FAB que, dirigiam o CAN no Acre.

E assim, durante anos e anos, ele foi estimado por todos do CAN na passagem por Tarauacá.

Carrapicho, no decorrer de sua vida, foi condecorado várias vezes pela tripulação da FAB.

Foi homenageado com a Comenda (medalha) Brigadeiro Eduardo Gomes, pelo seu tratamento cordial com os homens do CAN no município de Tarauacá.

Tempo depois, a Força Aérea Brasileira prestou uma homenagem ao Carrapicho, pelo seu elogiável trabalho e o carinho aos integrantes do Correio Aéreo Nacional, o que lhe rendeu uma medalha de “Amigo da FAB”.

Numa demonstração de mesura ao Carrapicho, a FAB resolvera trazer ao Acre os aviões da Esquadrilha da Fumaça.

As aeronaves fizeram emocionantes acrobacias nos céus de Rio Branco e em Tarauacá.

O espetáculo aéreo contou com a participação de Carrapicho de dentro de uma das aeronaves da FAB.

Nessa época da Esquadrilha da Fumaça, a minha família já estava em Rio Branco, mas do chão, eu presenciei as piruetas aéreas da FAB.

Jose Galera dos Santos o Carrapicho, é considerado, como o maior incentivador cultural de Tarauacá. Nunca deixou de anunciar os espetáculos (arte e cultura) com o seu megafone.

Em 2009, a rádio Nova Era – FM, de Tarauacá, instituiu em sua homenagem o prêmio Carrapicho de cultura, agraciado aos que mais se destacam nas artes no município.
Carrapicho em desfile cívico. Foto: Blog Tarauacá Notícias

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

MEU TEMPO DE CRIANÇA NOS SERINGAIS DO RIO MURU (Parte 4)

Txai Antônio Macêdo 
Crônicas Indigenistas

Ainda na colocação Currimboque: Promessa feita, dádiva recebida e sacrifício pago

Num daqueles ‘dias de branco’ -  como costumavam dizer os seringueiros adultos -, sai para cortar minha estrada de seringa, São José ‘de cima’ (lembrem-se disso: toda estrada tem seu próprio nome) e no decorrer do trabalho, naquele dia, adquiri uma febre fortíssima.

Ocorre que eu havia passado por baixo de um pé de Palmari e não vi a árvore, e por isso, ganhei aquela famigerada febre. Para aumentar minha má sorte naquele dia caiu uma forte chuva, e eu ainda estava longe de casa. Tive que sobreviver toda aquela chuvarada com a febre que me atacava de forma quase intolerável. Cheguei na casa de meus pais usando uma ‘muleta’  improvisada, feita com pau de caneleiro, e sem querer deixei minha mãe muito assustada, especialmente, ao me ver andando apoiado nessa muleta.

Passado mais de um mês, minha mãe, senhora Carmina Caetano Barbosa, que era uma pessoa muito religiosa e sempre bem motivada pela fé cristã, diante da situação que ela me via ali, aleijado da perna direita, devido ao choque térmico ocasionado pela febre e a chuvarada que tomei na estrada de seringa, caiu de joelhos ao chão e pediu a Santa Maria da Liberdade que intercedesse junto ao Criador pela cura da minha perna direita, que, ao que parece, já estava ‘encolhida’ há mais de 40 dias.  
Santa Maria da Liberdade

Ela prometeu para a santa que, se a minha perna voltasse a se movimentar como era antes, ela me mandaria a pé da colocação Currimboque  até o túmulo dessa jovem santificada para banhar minha perna na terra da sepultura dessa ‘santa’, que era uma moça já morta há muitos anos, e que havia sido ‘santificada’ pela população dos seringais. Assim, quarenta dias depois, comecei a movimentar minha perna e todos os outros seringueiros que me viam não se cansavam de dizer: Olhe o menino! Ficou bom da perna dona Carmina, a senhora foi atendida.

O verão chegou, e uma caravana de romeiros vinda de toda bacia do Rio Muru se deslocava para o local onde se encontrava a sepultura da santa milagrosa. Minha mãe que, já havia ouvido falar muito bem da referida moça que se santificou, não perdeu tempo: Logo preparou uma farofa daquelas muito deliciosa e duradoura, colocou-a em um saco encauchado com látex de seringueira e me ordenou acompanhar os romeiros para pagar a sua promessa.

Não discuti e nem pensei duas vezes: Coloquei a rede num saco. O saco numa estopa. Minha faquinha na bainha. A bainha no cinturão e fui caminhando por vinte e dois dias pelos varadouros da floresta, para cumprir a promessa feita por minha mãe, banhando-me na terra solta da sepultura da Santa. - Durante a caminhada junto à caravana de romeiros, compartilhei com eles momentos bons e momentos de sérias dificuldades, apresentadas ao longo dos varadouros, às vezes limpos ou, na maioria dos casos, com mata ‘serrada’.

Como a natureza é rica, e ao mesmo tempo cheia de surpresas. Passamos por muitas colocações das bacias dos Rios Muru, Rio Envira e Rio Paraná do Ouro. Dessas recordo de algumas como: Morada Nova, Cius, Vai quem quer, Sobral, Mato Grosso, Tianguá, Chato, Alto do bode, Alto Bonito e Paraná do Ouro. - Recordo-me dessas localidades pela importância que cada local desses teve para nossa viagem, pois, eram locais onde buscávamos informações sobre os varadouros, recebíamos refeição caseira e gratuita, tomávamos água de fontes e igarapés tiradas de potes de cerâmica. Eram locais onde descansávamos à noite, para, no dia seguinte, darmos continuidade de nossa viagem.

Mas, teve uma vez que andamos um dia inteiro na floresta, sem água para beber, pois, todos os poucos e pequenos igarapés estavam secos, mas, ainda assim, todos nós estávamos determinados a continuar nossa caminhada passando muitas vezes por dentro de capoeiras de antigas malocas, antes pertencentes a grupos indígenas já exterminados pelas “correrias”, praticadas por seringalistas como o Pedro Biló na bacia do alto rio Envira, Paraná do Ouro, rio Humaitá, rio Muru, rio Tarauacá, rio Jordão, rio Iboiaçu, rio Tejo, Paraná do Machadinho e rio Breu.

Depois deste dia de sede, esforço altamente controlado, fomos pernoitar na casa de um dos filhos de Pedro Biló, de nome Francisco Biló. Este senhor era um dos filhos que se juntava a seu pai, como um dos grandes matadores de índios.

Na moradia de Francisco Biló tinha água boa e abundante. Os donos da casa não estavam presentes na noite que chegamos nesta colocação mas, a decisão unânime de nossa caravana foi acampar ali naquela noite. Eu, deitado na rede ficava pensando nas aflições vividas pelos grupos indígenas quando eram atacados pela “correria” de Pedro Biló, e nós estávamos exatamente na casa do filho dele. De tanto pensar nisso, o sono ainda estava distante, embora estivesse enfadado de caminhar.

Durante a noite, a sede do dia anterior começou a aparecer. Foi quando me levantei para ir até uma talha grande de cerâmica antiga, que ficava sobre um cepo localizado no cantinho da parede de paxiúba. Para minha tristeza terminei encostando a barriga na talha, que por sua vez tombou e esfarelou-se no terreiro da casa: Meu Deus! E agora? - Eu, e os outros integrantes da caravana de romeiros ficamos muito preocupados com o acontecido, e todos se perguntavam: E agora? Quando o dono da casa chegar o que vai acontecer?

Antes da meia noite a família da casa chegou, e eu, tomando à frente de todos, me levantei da rede e expliquei para o dono da casa o que havia acontecido com a talha de cerâmica dele. Ele entendeu e, graças a Deus, nos perdoou sem promover qualquer alarde. Depois disso fomos dormir.

Eu, deitado na minha rede, ficava com minha cabecinha, de apenas onze anos, dando voltas e voltas no mundo da imaginação e das lembranças. Recordações das grandes histórias que me eram contadas pelo o seringueiro Rufino Coelho, vulgo Muru, um senhor que chegou à casa dos meus pais quando eu ia fazer meu primeiro aniversário e terminou ficando junto com nossa família para o resto da vida dele, vivendo muitos anos junto a nós.

Muru dizia que até chegou a ser recrutado para participar de turmas de correrias, onde viu muitas desgraças praticadas contra os povos indígenas brabos (isolados), naquela época.

Entre estas histórias, Muru me contava sobre as “correrias” praticadas por um homem, se não me engano este era procedente do Maranhão, de nome Maximiano da Fonseca, que, e seu nefasto negócio, contava com as participações de chefes de correrias vindo do Peru, conhecidos pelos nomes de Dom Elias, Dom Abudy e Dom Eloy.

Segundo a história do Muru, Maximiano da Fonseca era um homem cheio de mistérios e poderes: Chegava numa casa de família com sessenta homens em sua turma, pedia água recebia e dava os sessenta copos d’água para seus companheiros, mas, o único que os donos da casa viam era ele. Noutro ‘causo’ diziam que ele entrava sozinho numa maloca Indígena no meio da noite, cortava as cordas dos arcos e as molas de rifles em poder dos índios. Fazia tudo sem ser visto pelos índios, para, em seguida, com seus companheiros atacar essas malocas às cinco da manhã. Nestes ataques, as índias novas eram pegas e amarradas para trazer e entregar aos patrões nos barracões. Tais presas eram depois vendidas pelos patrões aos seringueiros e certas delas eram presenteadas a outros patrões. Bom e, assim passei a noite revivendo tudo aquilo que me era contado antes pelos seringueiros.

Finalmente o sono me venceu.

No dia seguinte a farofa de todos que integravam a caravana já estava no fim e, exatamente no entardecer deste dia, chegamos à sede do Seringal Liberdade, na margem esquerda do Rio Envira, de nome indígena Henê-Bariá ou Pixiã, na língua indígena Huni kuin. É lá onde se localiza o túmulo da Santa Maria da Liberdade e naquela noite de nossa chegada, logo à tardinha, cumpri minha missão de ir até o túmulo e me banhar com a terra da sepultura da Santa, com a qual a minha mãe tinha feito a promessa. Em seguida, me banhei nas águas do Henê-Bariá e, depois desse banho, veio o chamado para a nossa caravana, para a refeição da noite.

No jantar, eu comi carne de carneiro pela primeira vez. Até então, eu achava que aquele animal não era para agente comer e não me sentia convidado pelo o apetite mas, finalmente, comi aquela carne na janta, até porque sentia necessidade de repor minhas energias dispensadas durante os primeiros onze dias de caminhada pela floresta. Outro motivo, além da fome, eu não podia fazer feio na casa alheia como, por exemplo, pedir outro tipo de comida que não fosse o prato oferecido pela família, que nos recebeu e nos abrigou para o jantar da família.

Depois do jantar começaram muitas conversas sobre essa santa, que era uma linda jovem nascida e crescida no seringal, onde foi assassinada no local onde fica sua capela. Contaram que o irmão de Maria tinha um amigo e queria que a jovem namorasse o referido rapaz, e que, depois de um tempo viesse casar-se. Só que Maria não tinha o mesmo propósito, e por isso, não aceitou a indicação feita por seu irmão, que ao se sentir contrariado diante de seu amigo, pegou uma arma e atirou na irmã, vinda a mesma a falecer.

Depois da morte da jovem, logo santificada, o seringal Liberdade passou a ser um local de muito destaque, tão importante que, até hoje todos os anos é muito frequentado por diversos romeiros tanto do Acre quanto de fora do Brasil, que lá vão pagar suas promessas naquele local, e tem outros que vão ali para conhecer a história envolvendo aquele episódio.

Após pagar minha promessa voltei caminhando mais onze dias, junto com a mesma caravana que minha mãe havia me entregado. Chegando em casa minha querida mãe nos recebeu com uma mesa sortida de muitas comidas, todas produzidas com a devida qualidade da arte culinária de minha mãe e minhas irmãs.

Dou um salto na minha história, rompendo com a narrativa...

Talvez por conta desta importância, que, muitos anos depois, quando ocorreram os estudos de identificação e delimitação das terras indígenas Kulina do Rio Envira e Kulina do Igarapé do Pau, a faixa de terra que compreende a área do seringal Liberdade ficou fora dos limites das terras indígenas, respeitando o credo católico, o recanto sagrado e o livre arbítrio dos romeiros católicos que se apegam a jovem assassinada e santificada. E, revoltados com o fato desta faixa de terra ter ficado fora dos limites dos territoriais indígena, alguns Kulina (Madija), chegaram a furar os olhos da imagem de massa da santa colocada na capela pela Igreja Católica em homenagem a santa santificada. Isto foi feito quando os Padres levaram o corpo da jovem Santa para Roma.

Em 2010, enquanto realizava levantamento junto aos povos indígenas do rio Envira, para suprir o Plano de Mitigação e Compensação nas terras indígenas da área de influência direta e indireta de abrangência dose impactos da BR-364, parei nesse seringal e aproveitei para renovar meus votos junto a santa, que morreu pela liberdade de escolha. Nessa visita eu estava acompanhado eu Gessé-la, Maiane, Jucelino, Francisco Apurinã e Vanderlei o motorista de nosso barco fretado na cidade de Feijó no Acre.

Nessa viagem eu pude registrar outra versão da história, sobre a morte da jovem, contada pelo nosso barqueiro Vanderlei:

“Eu era criança quando ouvia a minha mãe contar que um marreteiro (comerciante itinerante) de nome desconhecido parou no seringal atualmente denominado de Santa Maria da Liberdade, com objetivo de apresentar e comercializar seus produtos. Naquela oportunidade o marreteiro foi convidado pelo dono da casa, pai da jovem para almoçar ali. Como de costume, este comerciante estava de posse de um revólver de calibre 38, o qual deixou sobre a mesa da sala. Nesse recinto estava a jovem de 16 anos, e a moça, sem noção do que poderia ocorrer, pegou a arma que estava carregada e brincando apontou para o rapaz, apertando o gatilho por várias vezes, sem que a arma realizasse qualquer disparo, Todavia, o jovem para quem Maria apontava a arma, era aquele que seu irmão queria que fosse seu namorado. Neste momento, o irmão da jovem pegou a mesma arma e falou: – vou mostrar como se atira. - E acabou que dessa vez a arma disparou contra a adolescente, ocasionando o falecimento dela. Antes da sua morte, enquanto agonizava, pediu para não fazerem nada contra o rapaz, pois ele não havia feito aquilo com o propósito de atirar nela, era tudo brincadeira.

Após alguns dias de seu enterro, o local onde ela foi sepultada começou a inspirar cheiro de flores, e todos que por ali passavam percebiam que se tratava de um túmulo diferente. Aquela notícia chegou até ao conhecimento dos padres do município de Feijó, que vieram para fazer uma inspeção e se surpreenderam ao constatar que a jovem falecida, havia se santificado.”

Deixo aqui essa história da jovem santificada, que me ajudou a fazer minha perna direita voltar a funcionar. O resto da história continuará no texto seguinte, ainda na colocação Currimboque.


Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem  admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)

BLOG ALMA ACREANA

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