Há exatos 58 anos, no dia 29 de junho de 1958, o Brasil conquistava sua primeira Copa do Mundo. Com Garrincha e Pelé o futebol brasileiro tornou-se “Insolente e vencedor”, segundo o dramaturgo Nelson Rodrigues. A Copa de 1958 confirmou esta visão. Pela primeira vez na história o mundo viu um time sul-americano levantando a taça em solo europeu.
Brasileiros comemoram conquista da Copa do Mundo da Suécia, em 1958
Mesmo antes de 1958 Nelson já apostava no êxito nos campos da Suécia. Ele foi o primeiro a chamar Pelé de rei e afirmou que, com Garrincha, a Copa foi uma facilidade para o Brasil.
A conquista da Copa de 1958 representou o apogeu de um ciclo do futebol brasileiro. A explicação correlaciona fenômenos de ordem variada – da economia, da política, da cultura e da história. No Brasil, há ainda certo distanciamento entre a análise desses fenômenos e o futebol. O escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que revolucionou a forma de analisar futebol no Brasil, escreveu, com razão, que não havia um só personagem da nossa literatura que sabia bater um mísero escanteio. Nelson Rodrigues foi o grande poeta do melhor momento do futebol brasileiro, entre 1958 e 1970. “O que nós procuramos nos clássicos e nas peladas é a poesia, insuspeita e absoluta, dizia.
Segundo o escritor, antes de conquistar o primeiro título mundial o brasileiro tinha “alma de vira-lata”. Mas, com Pelé e Garrincha, o futebol do Brasil perderia sua “humildade deprimente” e ganharia em qualidade. Seria “insolente e vencedor”, como os dois craques fora de série que despontavam. Ninguém melhor do que Nelson Rodrigues soube louvar o futebol popular – segundo ele tão bonito como “uma paisagem de calendário”.
Provocador, intitulou-se reacionário, espicaçou a “esquerda festiva”, os “padres de passeata” e as “freiras de minissaia”. E virou símbolo, ainda que incômodo, do conservadorismo. O escritor criou dezenas de expressões e personagens que ajudaram a formar a mitologia do futebol. Criou o “Sobrenatural de Almeida”, a “Grã-fina das narinas de cadáver”, o “Idiota da objetividade”, o “Narciso às avessas”, o “Príncipe etíope”, o “Sublime crioulo”, a “Lagartixa profissional”, o “Possesso”, o “Quadrúpede de vinte e oito patas” e tantos outros.
Nelson Rodrigues foi o primeiro dos grandes escritores brasileiros a pautar o universo futebolístico. Antes dele, havia poucas menções, em geral depreciativas. Lima Barreto denunciara o “jogo de elite” disputado por “moços ricos” em clubes fechados que não permitiam jogadores negros. Nelson Rodrigues trouxe o futebol para o centro da cena popular e deu-lhe caráter épico. O futebol em Nelson Rodrigues é arrebatado, grandioso, exagerado. A pátria “calça chuteiras”; “mantos invisíveis pendem do peito do rei Pelé”; o Fluminense “nasce quarenta séculos antes do paraíso”; surge o Fla-Flu e as “multidões despertam”.
Seleção Brasileira que disputou a Copa do Mundo da Suécia, em 1958
Ele foi um cronista de uma época em que o Maracanã recebia frequentemente mais de 100 mil torcedores, marca hoje raríssima. Chegou a afirmar que a ideia de multidão nasceu no Brasil com a construção do Estádio Mário Filho (nome oficial do Maracanã, homenagem ao seu irmão, o também jornalista Mário Rodrigues Filho). Segundo ele, nem o enterro do Barão de Rio Branco reuniu mais gente do que o Mário Filho para um Fla-Flu.
A respeito de Pelé, Nelson Rodrigues vaticinou-lhe a grandeza em crônica de 1957, quando o garoto começava a brilhar no Santos. Em março de 1958, três meses antes da Copa, publicou a crônica “A realeza de Pelé”, na qual profetizou a conquista do título porque agora, com o rei que dribla os adversários como “quem afasta um plebeu ignaro e piolhento”, os “inimigos tremerão”. Para ele, Pelé era o “sublime crioulo”.
Garrincha também inspirou o cronista. O pacato ponta-direita do Botafogo, a quem os “pombos da Cinelândia e os pardais do boulevard 28 de Setembro chamam de ‘nosso irmão, o Mané’”, seria um predestinado a manter o futebol brasileiro em evidência e a chacoalhar o país, acordando-o para sua grandeza.
O Brasil seria outro se nós, brasileiros, fôssemos como o “anjo das pernas tortas” dentro do campo. Garrincha carregou a seleção para o bicampeonato no Chile, em 1962, e o cronista escreveu: “Deslumbrante país seria este, maior que a Rússia, maior que os Estados Unidos, se fôssemos 75 milhões de Garrinchas”.
Quando Nelson Rodrigues despontou, no país do futebol não existia um registro histórico e abrangente sobre este esporte. Esta lacuna decorre, obviamente, da forma como nasceu e se desenvolveu o futebol em nosso país. Lima Barreto via o esporte como coisa essencialmente estrangeira. “O futebol é coisa inglesa, ou nos chegou por intermédio dos arrogantes e rubicundos caixeiros dos bancos ingleses, ali, da Rua da Candelária e arredores, nos quais todos nós teimamos em ver lordes e pares do Reino Unido”, escreveu ele na obra Feiras e Mafuás.
A sentença de Lima Barreto não era errada. Na fase em que o futebol se implantou por aqui – entre 1894 e 1920 –, o povo não tinha vez. Para entrar em campo, negros tomavam banho de pó-de-arroz – como foi o famoso caso de Carlos Alberto, que atraiu para o Fluminense o apelido que conserva até hoje. Na etapa seguinte, o futebol acompanhou a abertura para os que vinham de baixo proporcionada pela revolução de 30. Apareceram Fausto – a “maravilha negra” – e Leônidas da Silva –, o “diamante negro”.
O futebol brasileiro iniciou a sua trajetória para o sucesso quando, no começo do século XX, começou a deixar os clubes grã-finos e espalhar-se por várzeas e agremiações populares. Depois da revolução de 30, emergiu com toda a sua arte. Como o futebol, que se profissionalizou em 1933, a literatura e a música popular ganharam impulso e também viveram a sua “fase de ouro”.
Leônidas da Silva foi o Getúlio Vargas do futebol. Na Copa de 1938, ele brilhou e transformou-se no primeiro “garoto propaganda” do futebol brasileiro – anunciando uma marca de cigarro e o chocolate “Diamante Negro”, criado em alusão ao seu apelido. Na década de 1930, cerca de 50 mil pessoas, em média, assistiram aos fla-flus. O futebol transformou-se em esporte de massa.
O futebol-arte, que já em 1925 deslumbrou a Europa com a excursão do clube Paulistano, no qual jogava o craque Arthur Friedenreich – o time disputou dez jogos e voltou invicto –, começou a aparecer como característica brasileira e tocou o auge com a conquista da Copa de 1958. “Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: o verdadeiro, o único inglês é o brasileiro”, afirmou. Nelson Rodrigues, fazendo um contraponto às palavras de Lima Barreto em Feiras e Mafuás.
Pelé em ação contra a Suécia durante a final da Copa de 1958
Antes, na Copa de 1950, o Brasil passou por um trauma definido por Nelson Rodrigues como uma “catástrofe nacional”. “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como Hiroxima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroxima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”, escreveu.
A dimensão desta “catástrofe” pode ser medida pela decisão do goleiro Barbosa, que nunca mais quis voltar ao gramado do Maracanã. “Muita gente entrou para a história. Eu jamais sairei da história do futebol brasileiro por causa daquele jogo, em 16 de julho de 1950”, afirmou. “No Brasil, a pena maior é de 30 anos; eu fui condenado à prisão perpétua”, lamentou. O escritor Carlos Heitor Cony escreveu: “Deixei de acreditar em Deus no dia em que vi o Brasil perder a Copa do Mundo (de 1950) no Maracanã”.
Logo depois, o jornal Correio da Manhã lançou um concurso, com o apoio da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), para a escolha do novo uniforme. A única exigência era que as tonalidades deveriam ser as mesmas da bandeira. O estudante Aldyr Garcia Schlee, à época com 19 anos, tentou inovar. Deu certo. Na Copa de 1954, a equipe nacional entrou em campo pela primeira vez de camisa amarela, calção azul e meias brancas – começava a saga do maior símbolo do futebol mundial. E na Copa seguinte, a de 1958, começaria a era Pelé e Garrincha.
A conquista da Copa de 1958, portanto, tem um simbolismo que representa uma fase da evolução do povo brasileiro. Nos anos 1970, quando o país atingiu o auge da regressão imposta pelo golpe de 1964, o futebol começou a involuir. Recentemente, em um programa de televisão alguns jogadores da seleção brasileira – que estava em Londres para um amistoso com a seleção sueca para comemorar os 50 anos daquela conquista – disseram que pouco sabiam sobre o time fabuloso de 1958.
O que explica isso? Como dizia Vicente Matheus, o ex-eterno presidente do Corinthians, o difícil, vocês sabem, não é fácil. Há um pouco daquilo que Nelson Rodrigues chamava de falta de caráter – não dos jogadores, evidentemente. “Muitas vezes, é a falta de caráter que decide uma partida”, dizia ele.
Há poucos dias, o jornalista esportivo Juca Kfouri escreveu que a seleção brasileira é uma utopia – só existe nas mentes encaracoladas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). A seleção já não joga no Brasil, não treina no Brasil, não mora no Brasil. “O verde e amarelo é apenas uma jogada de marketing”, escreveu.
De fato, com a nova configuração do poder futebolístico extra-campo, saiu de cena o jogador respeitado pelo seu talento para entrar o atleta – ou técnico – temido por sua força, por seus gritos. O futebol-brucutu é regido pela égide da ciranda financeira. Um título futebolístico tem papel tão derivativo quanto mudanças na cotação do peso argentino em relação ao dólar no futuro ou a taxa de juros embutida numa ação da Petrobras.
Outro problema é a exposição de jogadores na seleção brasileira com objetivos comerciais. Qualquer perna-de-pau, antes mesmo de se firmar num clube brasileiro já projeta ir para a Europa pensando em jogar na seleção. O futebol-força tirou a arte de campo para entrar em cena os negócios.
O futebol, “religião laica do povo” na definição do historiador Eric Hobsbawn, reflete a cultura de um tempo. A conquista da Copa de 1958 expressou uma fase transição do próprio país.
Nelson Rodrigues explicou bem o significado daquela conquista. “Já ninguém mais tem vergonha da sua condição nacional. E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-latas. Sim, amigos: o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas”, escreveu.
Aquelas “virtudes” tiveram como expressão máxima a dupla Pelé e Garrincha. Juntos em campo por 40 vezes em jogos da seleção, jamais foram derrotados – a seleção ficou invicta por 13 jogos. O auge da dupla foi a conquista da Copa de 1962. Na Copa de 1966, a única vitória (3 a 1 sobre a Bulgária) marcou o fim da parceria mais bem-sucedida na história dos mundiais.
Na Copa de 1970, o ciclo iniciado em 1958 chegava ao fim. Ao som daquela musiquinha que, segundo João Saldanha, dizia que o negócio era para frente mas andava para trás, a seleção brasileira conquistou o tri no México. O título foi transformado em propaganda do regime militar. Antes do embarque, o comunista João Saldanha foi afastado do comando da seleção. Em seu lugar assumiu Zagallo, o ponta-esquerda do time campeão na Copa de 1958, que teria aceitado a convocação de Dario, o Dadá Maravilha, por imposição do presidente Médici.
Em 1974, a seleção brasileira mostrou os sinais visíveis de que aquele ciclo se encerrara. Na Copa de 1978, na Argentina, o poder autoritário que ainda mandava no país deu o tom. Os dirigentes da CBD eram todos militares ligados ao regime. O presidente era o almirante Heleno Nunes, que dispensou o competente e humilde Osvaldo Brandão para entronizar o capitão Cláudio Coutinho como técnico. Osvaldo Brandão falava a linguagem dos jogadores, que era a do povo; o capitão falava a língua do regime.
Voltou a se manifestar também o velho problema do racismo – que a rigor nunca desaparecera. Quando a seleção de Coutinho desembarcou na Argentina, um repórter lhe perguntou: “¿Pero, dónde están los negritos? Cuando Brasil venia com unos negros bicudos jugava bien; ahora vienen unos rubios de pelo largo y no juegan nada”. Mas eram também tempos de contestação à ditadura militar inclusive no futebol.
Em outubro de 1977, o presidente do Fluminense, Francisco Horta, disse que a causa da decadência do futebol era a sua militarização. Às vésperas da Copa de 1978, o centroavante do Atlético Mineiro, Reinaldo, defendeu a anistia, as eleições diretas e uma melhor “divisão do bolo”. Dois dias depois, o almirante Heleno Nunes, presidente da CBD, disse que Reinaldo não iria à Argentina. Foi, mas sob severa vigilância.
No Copa de 1982, a CBF – ex-CBD – iniciou a fase da “modernização”, a do futebol-business. E chegamos à utopia descrita por Juca Kfouri. Mas, olhando para trás, é possível afirmar que o futebol neoliberal logo será esquecido. Não é possível conceber como eterna a ideia de que não existirão mais aquelas jogadas mágicas, em que o futebol encontra a arte; aqueles lances que ninguém sabe explicar como acontecem, que exigem uma reflexão a respeito, um esforço qualquer de fruição, de tradução do que é rarefeito, de compreensão daquilo que não é imediato, berrante, visível. Seria muito pouco para a grandeza do futebol brasileiro e do ser humano.
Por Osvaldo Bertolino
Jornalista, pesquisador e historiador da Fundação Maurício Grabois