Cruzeiro do Sul e o Kambô merecem respeito (Especial)

A praça do centro cultural ainda estava em festa com as comemorações da vitória na Dança da Galera, quando o programa da mesma emissora anunciou uma nova reportagem sobre o Kambô.

Refletindo o caráter da emissora, a reportagem tendenciosa e superficial tratou de criminalizar a substância, o conhecimento tradicional e as pessoas que dela fazem uso. Nada disso surpreende.

Minutos antes, o kambô era retratado na coreografia vitoriosa como um dos símbolos da cidade.

Mas por que razão o kambô conhecido por diversos povos em toda Amazônia Ocidental em pelo menos três países, acabou se tornando um símbolo de Cruzeiro do Sul?

Quem quiser saber a resposta, deve visitar a singela casa de Dona Davina, no bairro da Boca da Alemanha. Davina é a viúva do ex-seringueiro Francisco Gomes Muniz, principal difusor da “vacina do sapo”. Francisco Gomes conviveu com os katukinas na década de 60 e trouxe a medicina para o âmbito urbano de Cruzeiro do Sul, a partir de onde se iniciou a difusão deste conhecimento para o restante do país.

Há menos de um mês a casa de Dona Davina recebeu a visita do repórter Gérson de Souza, da TV Record. Gérson tomou café-da-manhã, provou da tapioca e do cuzcuz de Dona Davina, conversou demoradamente com seus filhos e netos a respeito do kambô, e, o mais importante, solicitou por escrito o uso de sua imagem. Isto não impediu que Gérson abordasse também os aspectos polêmicos da “vacina do sapo”, como a biopirataria e a morte em Pindamonhangaba-SP.

Quanta diferença no tratamento dos repórteres da Globo! Os mesmos chegaram com suas câmeras ligadas, tomando imagens e acusando a todos de biopirataria. Não muito diferente do tratamento que tiveram com um professor da USP no episódio do vazamento de um isótopo radioativo no campus universitário (essa fica para outra ocasião). Por isso, não surpreende que o resultado seja criminalizatório: é o jeito da emissora lidar com a pauta.

Foi o kambô, mas poderia ter sido um isótopo radioativo, ou uma acusação infundada de abuso sexual na Escola de Base (a Globo, juntamente com outros meios de comunicação foi condenada a pagar mais de um milhão de reais por ter transformado educadores em monstros estupradores perante a opinião pública brasileira).

Gostem ou não, o kambô faz parte da cultura de Cruzeiro do Sul. Tratá-lo de maneira criminalizatória, significa condenar parte importante da nossa história.

Resta agora saber como queremos entrar para a história da humanidade: pela porta de trás, como responsáveis pelo tráfico e pela biopirataria, ou pela porta da frente da frente, como o povo que com o seu conhecimento, contribuiu para a cura de inúmeras doenças.


O herpetólogo Paulo Sérgio Bernarde da UFAC já discorreu sobre as propriedades medicinais da substância secretada pela Philomedusa bicolor . Os peptídios contidos na secreção são tema de estudo de dezenas de pesquisadores, entre eles, Carlos Bloch, do Embrapa. Estudos “in vitro” já sugerem a aplicabilidade de alguns destes peptídeos no combate ao HIV além de Leishmaniose, Malária, Isquemia entre outros. Tratam-se de estudos preliminares, mas já é um começo. Por outro lado, laboratórios japoneses e americanos já isolaram e patentearam peptídios isolados a partir da Philomedusa – trata-se da deltorfina e a dermorphina, com possíveis aplicações na medicina. (clique aqui para ver a lista de artigos científicos sobre o kambô)

Antes que continue, um detalhe importante: no caso da morte supostamente causada pelo kambô em Pindamonhagaba-SP o laudo do IML não detectou a presença dos peptídeos da rã, o que significa que para a ciência médica, a morte foi causada por problema cardíaco anterior à aplicação.

De qualquer modo, dizer que determinada substância cura ou mata, é apenas meia verdade. O pai da medicina ensina que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose.

E o que determina a dose, é o conhecimento. Para a ciência, ainda há um longo caminho a percorrer até que estes peptídeos possam ser transformados em remédios de aplicação na medicina.

O mesmo, contudo não pode ser dito de seu uso dentro do conhecimento tradicional. Seu uso é consagrado por séculos ou talvez milênios, dentro de um sistema de conhecimento diferente da ciência ocidental.

Neste sentido a chamada “Declaração de Veneza” , da UNESCO, em 1986 recomenda o diálogo entre a a ciência e os conhecimentos tradicionais como forma de oferecer uma alternativa ao modelo mecanicista que tem resultado, entre outras coisas na destruição do planeta e na auto-destruição da humanidade.

Creio que o exemplo da acupuntura seja válido. A acupuntura não tem qualquer comprovação científica de sua eficácia. E na verdade, nem precisa: ela é o fruto de milênios de estudos e observações que não seguem os parâmetros do método científico ocidental. Contudo, tem o seu uso consagrado, aceito e difundido em praticamente todo o planeta.

Obviamente que isso não significa que alguém possa ir até o bairro da Liberdade em São Paulo, comprar um kit de agulhas e sair aplicando acupuntura a torto e à direita, e pior, prometendo curas e cobrando por isso.

O que garante a credibilidade de quem exerce uma prática é a forma de transmissão do conhecimento. Assim é com a acupuntura, Shiatsu, Reiki, Artes Marciais, Yoga e outros sistemas de conhecimento e suas respectivas práxis.

O que vale para a conhecimento oriental seria válido também para o conhecimento indígena? É algo a ser discutido com mais profundidade, com os próprios detentores destes conhecimentos, ou seja, os indígenas.

Do meu ponto de vista, de alguém nascido e criado na cosmopolita São Paulo, dizer que determinado conhecimento “serve só para os índios” equivale dizer que os “índios” não fazem parte da humanidade: trata-se de uma nova espécie de gente ainda não catalogada e cuja história e conhecimentos não podem fazer parte do acervo humano.

Nepal, Índia e China recebem milhares de pessoas todos os anos em busca de conhecer na fonte, àquilo que de forma, mais ou menos filtrada (ou deturpada) tiverem contato em suas próprias cidades e países.

Nossa vizinha e irmã Pucalpa, no Peru, se consagra como “capital da ayahuasca”, recebendo a cada ano um contingente cada vez maior de pessoas em busca do conhecimento de seus “maestros”, ou ainda, para a cura que não encontraram na medicina do primeiro mundo.

Hotéis, restaurantes, agências de viagem e de transporte tratam-nos por “turistas” e para estes, nada mais importa do que o dinheiro trazido por eles em suas cidades.

O ponto de vista do buscador é outro: quem busca sabe que todo conhecimento tem um preço para ser obtido.

E o que tornou-se Cruzeiro do Sul na última década, se não uma referência para quem busca a biodiversidade e o conhecimento tradicional? Quanto disto deve-se justamente ao kambô?

No entanto, para que esta vocação seja abraçada pela sociedade, seria necessário um olhar diferenciado sobre os povos e a cultura indígena e muito mais que isso, uma verdadeira parceria de confiança.

O debate precisa ser colocado de forma clara dentro das próprias comunidades indígenas. No final são eles quem devem decidir se querem que seu conhecimento fique restrito às suas aldeias, ou se querem compartilhá-lo com o restante da humanidade. E também de que forma: apenas como objetos de pesquisa científica ou também como sujeitos, protagonistas de sua própria história.

Leandro Altheman EM http://www.juruaonline.com.br

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