O historiador e professor Carlos Alberto Alves de Souza, acaba de lançar em Rio Branco a revista Pontos de Educação. Durante 17 anos, ele enfrentou um processo que se revelou escandaloso na Justiça estadual por causa do livro didático "História do Acre", editado em 1992 pela M.M. Paim.
Por força de uma decisão liminar da juíza Maria Cezarinete, atual desembargadora e vice-presidente do Tribunal de Justiça, quatro mil exemplares da obra foram apreendidos e o julgamento do mérito protelado por quase duas décadas.
O polêmico trecho do livro teve origem em reportagem deste blogueiro, publicada em 1983 na imprensa do Acre, dando conta que o coronel de barranco Mâncio Lima (1875-1950), tratado como herói pela história oficial, havia se valido de correrias -matança organizada de índios- e do trabalho escravo da etnia poyanáwa para transformar a fazenda Barão, no extremo-oeste do país, em modelo de prosperidade da economia regional.
A longa reportagem, com fotos e depoimentos dos indígenas, iniciava assim:
"O velho índio poyanáwa Alberto Itxubãe jamais esqueceu aquela madrugada de 1913, quando assistiu sua tribo acordar em pânico, sob o fogo cruzado de aproximadamente 50 rifles de repetição, acionados pelos homens do coronel de barranco Mâncio Agostinho Lima. Os assaltantes, cada um munido de uma centena de balas, atiraram todos juntos e à vontade. O curumim Itxubãe, que tinha cinco anos de idade, foi um dos poucos a conseguir escapar com vida daquele genocídio em moda na época pela ocupação do Acre e da Amazônia. Aqueles atiradores cumpriram fielmente as ordens do coronel, para que fossem poupadas mulheres e crianças".
Dois filhos do coronel ajuizaram uma ação na 2ª Vara Cível de Rio Branco, os livros foram apreendidos e o autor teve que responder por crime de injúria, difamação e calúnia, além de um pedido de indenização milionária. O caso ganhou repercussão nacional, mobilizou a comunidade acadêmica, a Associação Nacional de História Oral e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Quando o processo teve início, Andressa Cibele, filha do historiador, tinha apenas cinco anos de idade, a mesma idade do curumim poyanáwa. Andressa cresceu, se formou em direito e foi quem assumiu a defesa do pai no processo que só foi julgado pela juíza Ivete Tabalipa em março de 2010.
A juíza avaliou que o livro não causou danos à imagem de Mâncio Lima, pois há relatos que a história ocorreu da forma contada. Além disso, considerou o fato de que, antes mesmo da obra ser publicada, diversos outros meios de comunicação relataram a história no mesmo sentido da que foi mencionada no livro.
- Essa mesma história tem versões distintas, dependendo do lado que se encontra, mas o direito de informação pertence a todos. Não se pode esconder uma versão da história, e a versão do historiador tem lastro nos inúmeros relatos mencionados, que não destoam. É a história contada e recontada com riqueza de detalhes por diversas pessoas – escreveu Ivete Tabalipa, que julgou a ação improcedente, condenou os filhos de Mâncio Lima ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios e pediu desculpas ao réu pela lentidão da Justiça na resolução do caso.
Na semana passada, quando lançou a revista, o historiador Carlos Alberto Alves de Souza quebrou o silêncio sobre o tormento que viveu durante 17 anos de censura.
BLOG DA AMAZÔNIA - Você lutou 17 anos pelo direito de publicar um livro. Como foi isso?
CARLOS ALBERTO ALVES DE SOUZA: Na verdade foram 17 anos que ficamos sem contato com uma obra fisicamente, que foi publicada com dificuldades. Na época, o Manoel Paim era o editor e teve muito prejuízo, eu tive prejuízo também financeiro, pois tinha que me defender juridicamente. Como aquilo era o primeiro processo conta a minha pessoa, fiquei muito assustado. Não sabia onde aquilo iria dar. Os livros foram apreendidos. Investimento financeiro do editor e meu investimento de pesquisa, deixando público sem acesso.
Foram quantos anos de pesquisa?
Uns 15 anos de pesquisa. O mais interessante é que esse processo teve divulgação nacional e local também. Por causa disso, as pessoas passaram a procurar mais o livro. O termo correria, por exemplo, que é muito antigo, já era usado por outros estudiosos. Era um termo que as escolas não davam muito valor. O antropólogo Terri Vale de Aquino também usou esse termo. Até você, Altino, quando escreveu a reportagem tendo como base o trabalho do antropólogo. Acho importante que, a partir do processo da apreensão do livro, o termo correria começou a ser usado na escola.
A matança organizada de índios na Amazônia, sobretudo no Acre.
Na verdade foi uma revelação do que realmente ocorreu com os índios. Os heróis acreanos, as classes dominantes, tinham também as mão sujas. A história não era assim tão bonitinha como contavam. O processo despertou para outros debates. Passei a ser conhecido nacionalmente porque a Folha S. Paulo deu uma ênfase, a imprensa local também deu, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Então ficamos sem a obra circulando, mas em compensação o debate foi muito grande acerca disso. A Justiça nunca teve uma audiência para discutir isso. Simplesmente o processo aconteceu, o livro foi apreendido e ninguém ouviu nenhuma das partes. Depois de 17 anos, uma juíza chamou para uma audiência pediu desculpas em nome da Justiça pela apreensão do livro. A minha filha, que na época em que o livro foi apreendido tinha cinco anos de idade, foi minha advogada. O livro foi liberado e isso foi uma vitoria também da Andressa Cibele. Ela foi advogada e a minha testemunha foi o indigenista Antonio Macedo.
O processo era muito hostil. Em algum momento você chegou a se arrepender do livro?
Era mesmo muito hostil. Passei a ser hostilizado por setores da sociedade, mas também passei a ser conhecido por outras pessoas, que perguntavam nas ruas: Cadê o processo? E o livro? Apesar de todas as pressões, o processo ficou 17 anos parado. Mas eu não me arrependo. Fui muito inocente na época. Jamais imaginei que seria alvo de um processo daquela natureza. Eu poderia ter utilizado outra forma mais sutil para amplificar a denúncia, pois a denúncia não é minha. Foi feita por outras pessoas, como o Terri Vale de Aquino. Os índios também falavam sobre isso, só que ninguém dava atenção. Acredito que o processo visava muito mais a possibilidade de uma reparação financeira do que reparar a honra do coronel. Era muito mais para tentar ganhar dinheiro. Mas não me arrependo. Nos livros que passei a escrever, as denúncias são apresentadas sem citar nomes, para ninguém me processar mais. Uso agora um contexto mais geral.
O grande foco do livro era a figura do herói cultural Mâncio Lima.
A história oficial trata seus heróis muito mal. Trata de heróis só no público, mas não conta a história dos seus heróis na vida privada. Na vida privada, político ou governador, por exemplo, tem seus problemas, desilusões, ataques de fúria, problemas conjugais. Os pretensos heróis não são tratados na vida privada, só na vida pública. E eu tratei, expus a vida privada de um herói sacralizado na história oficial. Depois eles mesmo admitiram em livro, que usei como prova.
O que dizia o livro dos familiares do coronel?
Que eles mataram o cacique Napoleão. Era uma confissão no livro que eles escreveram. Havia também relatos de outras atrocidades. Contra os indígenas, sempre acontecem atrocidades. Mas olhando para trás, acho que a obra deu uma contribuição muito grande. Eu não esperava que ela estivesse essa conotação, mas teve.
Qual conotação?
De política, de mudar uma estrutura de como a história era contada, como passou a ser contada a partir dali, principalmente a história indígena no Acre. Eu não esperava essa conotação que teve com o processo. Durante um tempo a historiografia brasileira escamoteou muita coisa sobre os índios. A história indígena quase sempre foi contada a partir da história dos brancos. As histórias reais quase não são contadas nos livros didáticos até hoje. Independente da questão financeira, estava ali uma visão de história. Quem na verdade fez isso foi o antropólogo Terri Vale de Aquino. Li as obras dele, as entrevistas que dava nos jornais. Ninguém queria ler ou entender o antropólogo. A obra dele merece ser estuda mais e mais. Nem sei se o Terri Aquino quer isso, pois ele é meio arredio. O meu livro não é tão importante. O mais importante é a obra do Terri Aquino, que é anterior ao livro, e ninguém deu atenção. Terri Aquino está aí, vivo. Ele traz uma perspectiva nova da antropologia. Não é aquela perspectiva descritiva, mas uma antropologia que expõe o modo de vida das pessoas, das contradições dos índios.
O que fez após a liberação do livro pela Justiça?
Quando a edição foi apreendida, lancei logo a outra edição sem usar as denúncias diretas contra o coronel Mâncio Lima. Usei outros termos para fugir de processos, o que aprendi com jornalista. Processos judicias atrasam a vida da gente. Eu não ia ficar tentando quebrar o muro com a cabeça, mas as denúncias continuaram sem citar nomes. Acrescentei outros capítulos sobre violência, sobre mulheres.
Quantas edições?
O livro já está na décima edição. Meu livro, apesar do governo do Acre não reconhecer, muito menos a Biblioteca da Floresta dá atenção, já vendeu mais de cem mil cópias. É o best-seller do Acre. Só perco para o escritor amazonense Márcio Souza aqui na Amazônia. Em todo canto tem meu livro. Se eu tirar mil cópias agora, vendo amanhã as mil cópias. Todas as edições estão esgotadas e estão me pedindo mais.
Quem é leitor do seu livro?
Alunos de primeiro grau, pessoas que fazem concurso, o pessoal que vai fazer vestibular, fazer Enem e a população como um todo.
Pretende fazer alguma edição voltando a citar o nome do coronel?
Não. Eu posso até fazer um livro sobre a história do processo para um debate historiográfico. Não é que eu queira negar a história, mas não quero perder tempo. Posso fazer essas denúncias sem citar nomes de seringalista. Mas estou reescrevendo o livro com outros capítulos sobre religiões. Coloquei numa edição sobre os católicos, mas vou incluir os protestantes, o Santo Daime, outras religiões e outras questões que estou pesquisando. A cada cinco anos renovo o livro.
Considera que foi censurado?
Sim. A justiça agiu de forma a atender os interesses de classes, estava do lado de uma pessoa que era do estado. Eu não representava muita coisa naquele momento. Era apenas um historiador que estava desonrando e desmoralizando um herói. A Justiça entendeu que a obra não tinha que circular. O pensamento na época era esse. Mas a juíza que julgou o caso 17 anos depois foi muito digna. Não esperava que ela tivesse aquela atitude de pedir desculpas em nome da Justiça. Achei ela uma pessoa muito serena, muito justa.
Quer acrescentar algo?
Que a história da população indígena está toda por ser reescrita. A gente vai olha, vai e olha de novo, mas acaba se perdendo porque não sabemos lidar com isso. Sinceramente, depois do processo, andei fazendo muita reflexão sobre isso. Nem me atrevo muito hoje a escrever sobre populações indígenas. Para isso é necessário conviver com elas. Hoje sou mais dedicado à história do que antes. Depois do processo, me dediquei muito mais ao trabalho de história e continuo pesquisando, continuo escrevendo, continuo levantando questões. O processo me amadureceu. Eu fiquei com muito medo no início. Só não fui preso por causa da atuação da então promotora Patrícia Rêgo, que chefia atualmente o Ministério Público do Acre. Morreram as partes, morreram as testemunhas. No processo só restava eu, a minha filha como advogada, o indigenista Antonio Macedo como minha testemunha, além do ex-deputado Osmir Lima, que foi testemunha deles, mas na hora sugeriu o fim do processo. Ele não me sacaneou.
Esquecemos de falar sobre a revista. Qual o foco dela?
A Amazônia é plural culturalmente e exige um espaço editorial acadêmico também plural. Em sendo plural a cultura da Amazônia, também exigem-se debates a respeito das culturas que se estabelecem na região. A revista Pontos deve ter, por excelência, o respeito a estas culturas, aos modos de vida que homens e mulheres criam e recriam nos espaços territoriais amazônicos. Pontos também abre espaços para textos que tratem de questões nacionais e internacionais. Optamos por uma prática que privilegie o diálogo entre teorias e evidências, sendo as evidências as próprias culturas que se apresentam a nós e que devem ser, ao mesmo tempo, problematizadas por nossas reflexões. Temos a consciência de que muitas questões consideradas como insignificantes, por sua pouca conotação política, tornar-se-ão grandes diante de nossas preocupações.
DO BLOG DA AMAZÔNIA