No dia em que o Acre para a fim de reverenciar a data que marca os 119 anos do início da Revolução Acreana, nesta sexta-feira (06), a história exige que também seja reverenciada a cearense Angelina Gonsalves, única mulher registrada como combatente, ainda que involuntária, na guerra travada pelo exército de seringueiros sob o comando de José Plácido de Castro e que culminou com a anexação do Acre ao território brasileiro. Exemplo de coragem, mas pouco lembrada na História que conta a epopeia da conquista do Acre, Angelina foi reconhecida na época pelo coronel Rosendo Rojas, o comandante em chefe boliviano.
Ferido no ombro após um tiro de espingarda disparado por Angelina, com a mulher presa e subjugada por homens de seu exército, pronta para ser assassinada como vingança por atirar contra o comandante, o boliviano, mesmo ferido, ordenou que a soltassem.
Conta a história que Rojas disse, em espanhol: – Libertem-na! Mulher valente como esta não se mata! Se o exército brasileiro tiver dez homens tão corajosos como esta mulher, já perdemos a guerra! – profetizou o comandante boliviano.
Angelina Gonsalves de Sousa nasceu em Aracati, no Ceará. Ainda jovem, casou-se com o também cearense Sebastião Ferreira de Sousa, o “Bastião”. Angelina e “Bastião” tentaram sobreviver no árido sertão com a criação de galinhas e cabras, mas a seca de 1877 a 1878 dizimou tudo. O casal então, já com um casal de filhos, Delzuite e Bento, resolveu morar na cidade, onde montou um pequeno café na praça central no qual vendiam beiju, tapioca, café e bolo – mas a venda era tão fraca que mal dava para o sustento da família.
Foi por intermédio de dona Teresa que o casal ficara sabendo que seu primo e noivo Neutel Maia, um jovem comerciante de Aracati, fora embora para o Acre e estava enricando com o comércio da borracha e gado. Por isso, disse dona Teresa, ele estava precisando de gente para trabalhar no Seringal Empreza, que era de sua propriedade. Foi assim, portanto, que Angelina e “Bastião” decidiram vir para o Acre, no ano de 1886, com todas as despesas de transporte e alimentação custeadas por Neutel Maia.
Instalados no seringal Empreza, Angelina sempre ajudava “Bastião” no corte da seringa, pois tinham planos de um dia voltarem a viver no Ceará. Para isso precisavam juntar dinheiro e, como todos os seringueiros, também tinham que pagar no barracão as mercadorias que Neutel Maia lhes trazia das casas aviadoras de Belém e Manaus.
A vida no seringal corria bem, a não ser pela preocupação com alguns índios que, de vez em quando, roubavam as plantações de milho, feijão, mandioca. Todo os dias “Bastião” e Bento, já quase um rapaizinho, saíam de madrugada para cortar seringa nas estradas e varadouros da floresta, Angelina e Delzuite cuidavam da roça.
Mas a situação complicou quando os bolivianos se deram conta de que o território lhes pertencia e passaram a reivindicar a posse dos seringais atulhados de brasileiros como Angelina e “Bastião”. Neutel Maia, o amigo e protetor do casal de cearenses, já ganhando muito dinheiro com o comércio e tendo os bolivianos como clientes, não queria saber de nada que atrapalhasse sues negócios, de forma que foi contra quando o espanhol Luis Galvez Rodriguez de Arias proclamou o Estado Independente do Acre. Por isso, o espanhol mandou prender Neutel Maia. Nesse caso, “Bastião” e Angelina apoiaram Neutel Maia antes de sair provisoriamente do Acre por algum tempo até as coisas se acalmarem. Com o tempo, Neutel Maia vendeu o Seringal Volta da Empreza para J. Parente e vendeu também as terras do Forte Veneza para “Bastião” e Angelina.
Entretanto, o clima de insegurança aumentou na região. Os bolivianos se sentiram ainda mais fortes quando souberam que o governo brasileiro considerara Luiz Galvez um aventureiro e o levaram preso para o Recife sob a promessa de que o território acreano, que ele queria transformar num país independente, seria de fato devolvido ao Governo da Bolívia.
Só que, neste capítulo da história, os estrategistas do governo brasileiro esqueceram de combinar com o governo do Amazonas, interessado nos dividendos gerados pela borracha e a castanha extraída no Acre, e com o gaúcho José Plácido de Castro, que andava por ali como agrimensor, depois de ter servido ao exército e participado de algumas batalhas. O então governador amazonense Ramalho Júnior, ao saber das aptidões de militar de Plácido de Castro, o convence e o financia a vir para o Acre, liderar um exército de seringueiros para expulsar os bolivianos.
Plácido de Castro aceita a tarefa e a 6 de agosto de 1902, em Maraiscal Sucre, como se chamava Xapuri na época em que os bolivianos se achavam donos do lugar, faz eclodir a primeira batalha contra os bolivianos. Os chamados brasileiros do Acre decidiram lutar contra as forças armadas bolivianas. “Bastião”, como todos os seringueiros que viviam por aqui, foi convocado para lutar, juntando-se aos homens de Plácido de Castro.
Primeiramente, o marido de Angelina estivera no grupo de combate que Plácido levara para lutar em Mariscal Sucre. Como praticamente como não houve resistência alguma nesse primeiro combate contra os bolivianos, o coronel Plácido trouxe seus homens para a Volta da Empreza, próximo à beira do rio Acre. No local, “Bastião” contraiu o beribéri, doença comum na região, na época. Reduzido a pele e ossos, atirado numa rede, prostrado, febrilento, amargurado e irritado por não poder participar com os companheiros na Revolução, foi liberado para ficar em seu rancho no Forte Veneza, onde hoje é a o atual bairro da Cidade Nova, em Rio Branco.
Ali, os brasileiros foram pegos de tocaia pelos soldados bolivianos, comandado pelo coronel Rosendo Rojas. Plácido e seus soldados seringueiros tiveram que recuar para que a derrota não fosse pior.
Em 1902, após a vitória boliviana no primeiro combate da Volta da Empreza, os bolivianos começaram então a entrar em casas com a intenção de prender os brasileiros fugitivos. Quando entraram na casa de “Bastião” o encontraram debilitado e deitado numa rede. Nissso chegou um soldado boliviano e vendo o homem enfermo, “febrilento”, quase um cadáver, aproveitou para tirar-lhe uma provocação de deboche:
– ¡Mira! ¿Y tu? Te faltan las gambias? Por qué no te escapaste también?
Mesmo em extrema fraqueza, “Bastião”, ferido na sua dignidade pátria, reagiu e, num derradeiro esforço, soltou na cara do atrevido algumas palavras de revolta:
– Vem aqui pra vê se é homi, seu “fiduma égua!”
Foi o que bastou para que um grupo de soldados de Rojas, avançando sobre o homem totalmente debilitado e sem chances qualquer de defesa, o arrastassem porta a fora, com cusparadas, pontapés e, por fim, crivaram-no de balas à queima-roupa.
Naquele momento, Angelina voltava do roçado e, ouvindo o barulho, pegou a espingarda do marido e quando o viu crivado de balas numa poça de sangue, quase enlouqueceu. Furiosa e enlouquecida, espingarda na mão, ela conseguiu disparar um tiro que acertou o ombro do Coronel Rosendo Rojas.
Quando um dos soldados bolivianos a pegaram à força e já estavam prontos para matá-la, o coronel, mesmo ferido ordenou que a soltassem e disse: “Libertem-na! Mulher valente como esta não se mata! Se o exército brasileiro tiver dez homens tão corajosos como esta mulher, já perdemos a guerra!”
Viúva e destemida, ela acabou por se integrar de vez como combatente do exército de Plácido de Castro. No último combate dos brasileiros contra os bolivianos, no cerco da tomada de Puerto Alonso (atual Porto Acre), Angelina foi alvejada e tombou no campo de batalha. Ela foi um dos 56 soldados brasileiros mortos nesse combate. Bento e Dezuite, com a ajuda do Coronel Alexandrino José da Silva, levaram seu corpo para o Forte Veneza, onde na presença de todos, Angelina foi enterrada ao lado do túmulo de seu marido “Bastião”.
O Coronel Alexandrino, que também era cearense de Aracati e amigo de “Bastião” prometera para Angelina que vingaria a morte do seu marido. Ele era um dos homens fortes de Plácido de Castro, líder do Grupamento das Peixeiras e protagonizou algumas das passagens mais violentas nos combates contra os bolivianos, como a vitória dos brasileiros dentro do território boliviano no povoado de Santa Rosa, onde massacrou os soldados bolivianos a golpes de peixeiras em luta corporal!
Também o soldado boliviano que matou covardemente “Bastião”, após a derrota final das tropas bolivianas, foi ordenado pelo Coronel Alexandrino a ficar solto na sua frente, na presença de todos. O Coronel Alexandrino lhe ofereceu uma peixeira e disse que lutar contra ele e somente um dos dois sobreviveria! O soldado boliviano perdeu a luta e foi morto com várias perfurações no corpo e este foi o motivo de vingança.
POR TIÃO MAIA, PARA CONTILNET