Precisamos ‘desacreanizar’ a história do Acre, ela sofre de megalomania, diz pesquisador da Ufac

Eduardo é formado em economia e é professor de história na Universidade Federal do Acre (UFAC)/Foto: Arquivo Pessoal
Quando o espanhol Luiz Gálvez de Arias, em 1899, proclamou o Estado Independente do Acre, mal sabia ele que o seu grande feito serviria para fomentar a identidade de um povo e a grandeza de um Estado. Afinal, tornou-se comum ouvirmos que o Acre é o único Estado por opção e que o acreano (ou acriano) foi o único a lutar para ser brasileiro.

Quando os nossos “heróis” resolveram fazer do Acre uma região independente, sabiam da importância geopolítica dele para a economia mundial. A biodiversidade daquele território era muito rica, suas terras eram produtivas, e nelas existiam pessoas dadas ao trabalho.

Em 17 de novembro de 1903, o Brasil firmava com a Bolívia o Tratado de Petrópolis, nacionalizando, com isso, cerca de 191.000 Km². O Acre foi incorporado ao Brasil e, na situação de “filho mais novo”, coube à pátria amada, como uma espécie de “mãe gentil”, administrá-lo diretamente, rebaixando-o perante os outros Estados, à condição de Território Federal. Isso gerou muitas divisas para os cofres da União, pois estes eram o destino de todos os impostos recolhidos naquela região sobre a exportação da borracha. A renda gerada não foi pouca, pois a borracha era o segundo produto em exportação no Brasil na década de 1910, perdendo apenas para o café.

E se a cultura cafeeira gerou a sua aristocracia, os “borracheiros” também formaram a deles. O que não faltam são livros para relatar a luxúria de seringalistas que acendiam charutos com notas de 100 contos de réis nos cabarés de Manaus e de Belém.

Apesar da crise que a economia gomífera amazônica enfrentou a partir da segunda metade da década de 1910, por causa do descaso do governo federal e, principalmente, da concorrência asiática, cuja produção superou a do Brasil em 1913, o extrativismo ainda se conservou como a principal atividade econômica na região.

Na primeira metade dos anos 1940, com a invasão da Malásia pelos japoneses (1942) no auge da Segunda Guerra Mundial, o Acre novamente se tornaria viável, cumprindo, embora por brevíssimo tempo, o destino no qual Gálvez e Plácido de Castro já haviam preconizado.

Mas se a história não se repete, a não ser como farsa ou tragédia, como bem diria o pensador alemão Karl Marx, o chamado segundo ciclo da borracha fomentou uma nova onda de migrações para o Acre. Os nordestinos, também chamados de “arigós”, produziram “borracha para a vitória” dos aliados, mas tão logo a guerra foi declarada encerrada, em 1945, todas as promessas que o governo federal fizera aos “soldados da borracha” caíram por terra.

Os arigós jamais conseguiram os mesmos privilégios, salários e honrarias dos pracinhas da FEB (Força Expedicionária Brasileira) que combateram na Europa. O que houve foi exatamente o contrário, já que o poder público abandonou-os à própria sorte naquela selva. O beribéri, a malária, os animais silvestres, a melancolia, dentre outros, dizimaram-nos aos montes, fazendo dessa irresponsabilidade governamental um verdadeiro “hecatombe social”.

Dissabores e adversidades à parte, formamos um povo e tínhamos um território a administrar. Em 1962, o Acre foi elevado à categoria de Estado e, a partir de então, sua população passa a ter o direito de eleger seus próprios representantes políticos, que assumiriam a responsabilidade de tornar o Acre mais uma vez viável economicamente. Todos esses eventos, somados à luta dos seringueiros contra os pecuaristas nos anos 1970 e 1980, são espécies de capítulos da “saga do povo acreano”. Atualmente, a defesa do gentílico “acrEano”, pode ser que figure como mais uma etapa dessa história aguerrida.

No entanto, essa não é a opinião do professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Eduardo Carneiro, que já há um bom tempo vem alertando sobre as manipulações que fazem parte da versão epopeica da história do Acre. Segundo ele, o processo de formação histórica do Acre foi marcado por uma série de práticas violentas e corruptas desabonadoras da representação “gloriosa” que os livros trazem. Por isso, ele prefere tratar o período com o conceito de “patogenia”, já que, segundo acredita, a sociedade acriana foi constituída, desde sua gênese, por “patologias sociais”.

O “sangue” e o “lodo”, no subtítulo do seu primeiro livro, publicado em 2015, representam tais patologias, que em resumo podem ser assim identificadas: fraudes no aviamento, conflitos armados, estupro de nativas, invasão de territórios, extermínio indígena, concentração fundiária, descaminho da borracha, escravidão por dívidas, sonegação fiscal, tráfico de mulheres e mercantilização feminina, exploração predatória da natureza, extermínio de culturas milenares, inconstitucionalidade, entre outros.

O professor alerta que a versão epopeica da história do Acre não tem compromisso com a verdade dos fatos e que foi escrita com a missão de fomentar o otimismo, a união e o ufanismo na comunidade local. Ele explica que a identidade acrEana foi inventada e sustentada por políticas simbólicas que se materializam, dentre outras, por meio da divulgação daquilo que ele chama de “abuso da história”. A defesa do gentílico “acreano”, portanto, faz parte dessa política de engrandecimento do acrEano, ocasionando o que ele chama em seu último livro de “megalomania coletiva”.

Em seu livro a Epopeia do Acre e a Manipulação da História no Movimento Autonomista ao Governo da Frente Popular do Acre, ele mostra como essa versão epopeica se tornou hegemônica. Diz que assim aconteceu porque ela se tornou em uma importante ferramenta na defesa dos interesses de grupos políticos dominantes. Segundo ele, tanto o Movimento Autonomista quanto a Frente Popular fizeram uso político do passado para promover suas causas.

Veja os livros do professor e pesquisador, Eduardo Carneiro, clicando aqui.

“Mas o povo não precisa de epopeia, muito menos de heróis. Precisamos, sim, de uma educação emancipatória que promova a conscientização popular. Defendo um ensino sincero da história do Acre, pois prefiro provocar feridas narcisistas no ‘eu’ acriano a ter uma imagem dele mais próxima do real, do que me embriagar no ‘acreAnismo’ e sentir orgulho em ‘eu’ acriano que não existe”, acrescenta o historiador.

Historiador e economista, com mestrado em Linguagem e Identidade, doutor em História Social pela USP (Universidade de São Paulo) e doutorando em Estudos Linguísticos pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), Eduardo de Araújo Carneiro, 37, a convite esteve na redação da ContilNet e concedeu a seguinte entrevista:

ContilNet – Como o senhor avalia o debate acerca dos gentílicos “acreano” e “acriano”?

Eduardo Carneiro – Atualmente vejo um apego muito grande por parte de representantes da elite acriana pelo gentílico “acreano”. Devido à apologia que fazem, resolvi estudar o termo mais profundamente. No entanto, minhas pesquisas ainda estão em andamento, mas já posso emitir algumas opiniões que ficarão expostas no decorrer dessa entrevista. Bem, o Acordo Ortográfico brasileiro prevê o uso da grafia “acriano” como norma padrão. Apesar de ratificada e promulgada, as mudanças ortográficas previstas ainda entraram em vigor imediatamente, pois sua obrigatoriedade foi adiada de janeiro de 2013 para janeiro de 2016. Nessa fase de transição, as novas regras passaram a ser usadas, embora em caráter experimental e, nesse contexto, as duas grafias poderiam ser consideradas corretas do ponto de vista normativo da língua. No entanto, a partir do início desse ano, apenas a grafia “acriano” consta como padrão de norma culta. Eu avalio o debate sobre o gentílico como algo “improdutivo” e sem razão de ser se levado em consideração tantos outros temas fundamentais e urgentes que afetam o nosso Estado. Se os nossos intelectuais se unissem para discutir o endividamento público do Estado e depois lançassem uma nota pública ou fizesse consulta popular sobre a manutenção ou não da aposentadoria de ex-governador ganharíamos muito mais, e a comunidade acriana agradeceria. Na próxima geração, ninguém mais sentirá falta do “acrEano”, assim como não sentiram do “Brazil”.

Como você avalia o posicionamento da Academia Acreana de Letras quanto a isso?

A Academia Acreana de Letras, embasa o seu discurso em favor da manutenção do gentílico “acreano”, dentre outros, fazendo uso dessa narrativa epopeica, como se o significante “acreano” fosse portador de algum significado “glorioso”, tendo em vista o discurso heroico e patriótico que atravessa toda essa retórica. Portanto, a defesa do “acreano” foi amalgamada com a defesa da “identidade epopeica”, pois sem essa última, a defesa do gentílico não ganharia força. Por isso, a crítica que faço não é com relação à manutenção ou não do “acreano”, mas aos sofismas historiográficos materializados no discurso de defesa da Academia. Só achei errado que, antes mesmo da iniciativa da consulta pública, alguns membros da AAL já se colocaram como porta-vozes do povo. É como no período da dita “Revolução Acriana”, em que os membros da Junta Revolucionária deixavam grafados nos documentos que falavam em “nome do povo”, mas nem Gálvez ou Plácido de Castro convocaram uma única assembleia de seringueiros para decidir sobre o conteúdo dos decretos que baixavam. Além do mais, cabe a nós avaliarmos até que ponto uma consulta on-line representará a opinião daqueles que não têm acesso à internet e daqueles iletrados que sequer sabem escrever. Acredito que a Assembleia Legislativa não poderá fazer uso de uma consulta pública que não atingir a maioria da população acriana. Além do mais, nenhum debate vem sendo feito sobre o tema, o que torna a consulta pública algo improducente, já que parte da população ainda está presa ao imaginário epopeico.

Por que o senhor optou pelo “acriano”?

Desde o início optamos pelo “acriano” e explico o motivo: primeiro, porque ele estava mais compatível com as pesquisas que realizava, pois tentei desmistificar a história do Acre, mostrando que o conteúdo epopeico dela era uma estratégia discursiva utilizada politicamente por aqueles que tinham alguma coisa a ganhar com a Questão do Acre e que precisava mobilizar a opinião pública em favor de suas causas. Mostrei em meus livros que o momento fundador do Acre não estava tão envolto de “glórias”, da forma como os livros de história nos dizem. Identifiquei inúmeras “patogenias” nessa sociedade nascente, ou seja, práticas imorais e até criminosas realizadas pelos primeiros acrianos, como fraudes no aviamento, conflitos armados, estupro de nativas, invasão de território, extermínio indígena, concentração fundiária, descaminho de borracha, escravidão por dívida, sonegação fiscal e tributária, tráfico de mulheres e mercantilização feminina, exploração predatória da natureza, assassinato de culturas nativas, mandonismo político, inconstitucionalidades, dentre outros. Tudo isso, “de forma mágica”, foi ocultado e desapareceu na narrativa epopeica, cuja missão, não é contar o que de fato aconteceu, mas mobilizar a opinião pública em favor das causas acrianas [anexação, autonomia, desenvolvimento sustentável, etc] e fomentar o otimismo, o ufanismo, a união e a passividade (alienação) do acriano. O gentílico “acreano” está centenariamente saturado por um sentido identitário megalomaníaco, que aponta para uma grandeza acriana que não existe historicamente. O termo silencia inúmeras expressões de pertencimento e de gentílicos de comunidades nativas que moravam na região e que foram exterminadas durante o processo de invenção do Acre(ano). O termo “acriano” é estrategicamente empregado nos meus livros como uma ação de resistência ao culturicídio inscrito na grafia “Acre(ano)”, e todo o seu conteúdo “romântico” naturalizado pelas tradições, dentre elas aquela que diz que o “acreano” é o “único brasileiro por opção”. A utilização não tem nada a ver com o debate linguístico normativo, apenas tento provocar com essa oportunidade que surgiu mais uma fissura na rede discursiva que sustenta a ideologia do “acrEanismo”. Utilizo o “acriano” para se referir ao sujeito de “carne e osso”, ao “acreano real”, aquele despido das tradições que o inventaram como modelo de brasilidade, aquele desmistificado de sua epopeia, desencantado de seus feitos supostamente “grandiosos” e patriótico. O “acreano” é visto por mim como o “acriano higienizado”.

O senhor saberia dizer qual a origem do gentílico “acreano”?

Não vou entrar na explicação etimológica, pois a resposta é óbvia. Posso dizer que, historicamente, é provavelmente que tenha surgido a partir de 1895 quando o governo boliviano tomou a iniciativa de requerer a soberania naquelas terras banhadas pelo rio Acre. Antes os migrantes eram conhecidos como “brasileiros do Acre”, a partir de então, se tornou mais regular o uso do “acreano”. Isso me leva a defender a hipótese de que o uso do gentílico foi uma tentativa de uniformizar aquelas pessoas, criando vínculos entre elas, para melhor mobilizá-las em favor da Questão do Acre. Ser “acreano” significava não ser boliviano. Através do gentílico ficou mais fácil de reconhecer o “outro”, que deveria ser combatido: os bolivianos. Portanto, o surgimento do “acreano” tem a ver com uma questão de “alteridade”. Outro aspecto relevante é o fato de ser comum o uso do “acreano” para se referir aos sujeitos que habitavam às margens do rio Acre e, no máximo, àqueles que moravam na região banhada pelo rio Purus. O gentílico “acreano” não teve a mesma força simbólica na “metade ocidental” do Acre como teve na “oriental”. O termo representava a hegemonia do Purus-Acre sobre o Juruá-Tarauacá. Por várias vezes a ideia do separatismo ganhou força no Juruá, o que não deixava de ser, indiretamente, uma tentativa de inventar um outro gentílico que tivesse mais a ver com aquela região. Resumindo, eu prefiro não tentar explicar a origem do gentílico a partir do toponímico Acre, pois se assim eu fizer, eu perco o conteúdo extralinguístico que, a meu ver, se mostra muito mais útil para elucidar essa questão.

E do toponímico “Acre”?

A esse respeito poderei apenas lançar algumas luzes, já que ainda estou pesquisando o assunto. Mas posso afirmar que o termo etimologicamente falando não foi um resultado de um erro da grafia do Aquiry supostamente realizado em fins dos anos 1870. Isso porque há um documento datado em 1851 em que o nome “rio Acre” já aparece, estou referindo-me ao Tratado entre o Brasil e o Peru sobre fronteira, comércio e navegação do rio Amazonas. O certo que o rio era reconhecido pelo menos por dois nomes: Aquiri(y) e Acre.

Então, por que o nome Acre se tornou mais popular entre os brasileiros?

É possível que assim tenha acontecido devido ao fato os falantes de língua espanhola e inglesa terem dado preferência pelo uso Aquiri, basta verificar os jornais bolivianos da época anteriores à proclamação do Estado Independente do Acre por Galvez, em 1899, e também o relatório escrito por W. Chandless, nos anos 1860, que teve por título An Exploration of the River Aquiry, an Affluent of the Purus. Portanto, a rejeição pelo Aquiri talvez tenha sido pelo fato de a língua espanhola personificar, naquele contexto, a figura do boliviano. O nome Acre ganhou força simbólica quando Galvez o elegeu como referência para dar nome à república que proclamara. É possível que ele assim tenha feito devido ao fato de a região banhada pelo rio Acre ser o mais fértil em seringueiras e também o mais populoso. É bom lembrar que a República do Acre, embora tendo a mesma grafia do Acre atual, uma unidade federativa do Brasil, ambos são signos diferentes, pois representam sentidos diferentes. Primeiro, porque o Acre de Galvez era um país, e segundo porque ele abrangia somente os rios Acre, Iaco e Purus.

Isso quer dizer que existiram dois Acres?

Do ponto de vista semântico discursivo e da descontinuidade histórica existiram muito mais do que dois. Em sua tese de doutorado, a professora Maria José Bezerra (2006) dividiu o processo de “invenção do Acre” em quatro momentos: o “Acre estrangeiro”, o “Acre brasileiro”, o “Acre emancipado” e o “Acre viável”. Mas o assunto certamente não foi esgotado, pois também caberia um estudo sobre o “Acre republicano” advindo dos discursos de Luís Galvez; um Acre amazonense defendido por Rui Barbosa; o Acre Meridional e Setentrional inventados em 1903 com a chegada das tropas brasileiras lideradas pelo general Olimpio da Silveira; o “Acre pré-histórico” mencionado nos discursos do historiador Marcus Vinícius; o Acre indígena presente nos discursos de lideranças nativas que atualmente reivindicam a (re)demarcação de suas terras, etc. Cada um desses Acres deve ser compreendido como um acontecimento linguístico singular, pois cada uma deles tem uma formação discursiva própria. O contexto da emergência e utilização deles Acres são diferentes e os atores sociais que empregaram-nos também.

O governo estadual lançou, no último dia 25, uma consulta pública sobre o uso dos termos “acreano” e “acriano”. Caso aprovado, o termo “acreano”, que é tradicionalmente utilizado, será encaminhado um projeto de lei à Assembleia Legislativa para tornar oficial o seu uso. O que está por detrás disso?

Se querem manter o “acreano” mobilize a opinião pública sem a retórica do “acreanismo”, pois, se assim o fazem, teriam que discutir as práticas e políticas simbólicas que sustentam e fomentam essa ideologia no imaginário social dos acrianos. Eu percebo que estão querendo fazer da defesa do gentílico uma nova “revolução acreana”, construindo assim, uma unidade em torno de uma causa, que seria uma nova etapa da “saga acriana”, que não cessa nunca, que uma espécie de prática ritualística do mito do eterno retorno. Se assim o fazem, acredito que a discussão deva sair dos limites da etimologia e da gramática normativa para ir até os estudos linguísticos da semântica e os sociológicos da identidade coletiva. Então, a consulta pública não deveria ser sobre a permanência ou não do gentílico e sim da permanência ou não do conteúdo epopeico que ele representa. Se o que está em jogo é a identidade acreana, então deveríamos debatê-la antes da votação. Será pertinente a manutenção de uma identidade que mais aliena do que conscientiza?

O senhor tem falado várias vezes em “acrEanismo”, afinal, o que você quer dizer com isso?

Acredito que o acrianismo seja um sentimento identitário baseado em um discurso ufanista produzido e sustentado pelos grupos políticos que se alternam no poder político acriano. Esse sentimento é utilizado politicamente para manipular o comportamento coletivo e a opinião pública a respeito de diversas questões. Por exemplo, quando se quer o apoio popular para uma determinada causa, basta associá-la ao acrianismo. Esse discurso confere aos seus porta-vozes legitimidade perante os seus interlocutores. O acreanismo não é um sentimento espontâneo, pelo contrário, ele é um resultado de políticas simbólicas que são materializadas nas comemorações cívicas, nos monumentos, nos discursos de professores, nos livros didáticos, nos documentos históricos, etc. Esse material é consumido e quando internalizado produz o sentimento de pertencimento, inventando a ideia de comunhão identitária. Quando eu me refiro a políticas simbólicas eu estou falando de técnicas de alienação coletiva provocada pela invenção e repetição de discursos históricos, culturais e publicitários que manipulam a opinião pública em favor de propósitos político-partidários. Quero dizer com tudo isso que houve um processo de “acreanização” do [gentílico] acreano, e quem operou essa significação foram aqueles que tinham o poder de opinião. O que faz de um indivíduo um “acreano”, não é a permanência ou não do gentílico e sim a assimilação do “acrianismo” enquanto ideologia. É ele quem desperta o sentimento imaginário de comunhão coletiva entre os habitantes do Estado do Acre. E a identidade acreana foi e é uma espécie de espelho de narciso da elite acriana, ela adora se olhar nesse espelho para se envaidecer com o sofisma de que é a “única que lutou para ser brasileiro”. É por isso que defendo um ensino mais sincero da história do Acre, pois prefiro provocar feridas narcisistas no “eu” acriano e ter uma imagem dele mais próxima do real, do que ter que tomar um “doping” de acrEanismo todas as vezes que desejar sentir orgulho de um “eu” acriano que não existe.

E o processo de significação das palavras? O que o petismo defende, afinal?

Os estudos linguísticos atualmente já não defendem mais a imanência do sentido de uma palavra. Até os anos de 1960, era aceita a ideia de que um signo linguístico era portador de um significado. Hoje sabemos que o processo de significação é um produto social e convencional. A dicionarização do sentido é um ato que tenta fixar os limites semântico de uma palavra, mas, na vida cotidiana, as palavras ganham vida e sentidos outros. Ou seja, toda palavra com sentido fossilizado é ideologicamente marcada. A grafia ou o significante do gentílico “acreano” não pode ser considerado como um portador da semântica identitária do povo acriano nem de suas tradições. Isso porque não há um significado imanente a essa palavra. Mas é preciso termos bem claro que o sentido hegemônico dado à palavra acreano não está ali de forma gratuita e natural, ela reflete o ponto de vista de um grupo de interesse. Sendo assim, posso dizer que o petismo não está defendendo o gentílico “acreano”, e sim a ideologia do “acrEanismo”, que sempre esteve próxima ao status quo acriano. Essa defesa não é uma causa do “povo”. O “povão” está preocupado com o “ganha pão”, não tem tempo para “filosofar”. Estão querendo fazer do gentílico uma causa popular, mas ela não é.

Mas os defensores do “acreano” argumentam que as mudanças linguísticas do atual acordo ortográfico foram “impostas de cima para baixo?”

Eu também acho. Mas esse fenômeno não é nada atípico no Brasil. Aliás, todas as línguas nacionais nos Estados Modernos foram um resultado de imposição autoritária com graus variados de violência. Mas é bom que se diga que, na verdade, as línguas nacionais encobrem uma variedade de línguas subalternas e minoritárias, basta observar o mapa etnolinguístico do Brasil para constatar isso. Além do mais, o que é a norma culta de uma língua senão a imposição de uma língua considerada “padrão” sobre outra tida como “não-padrão” ou inculta? A sociolinguística está aí para nos ajudar a entender esse fenômeno, já que o “certo” ou “errado” do ponto de vista gramatical é sempre uma escolha feita tendo como referência a forma como os grandes escritores da literatura escrevem. Ou seja, é a imposição da cultura letrada e grafocêntrica sobre a cultura não letrada e oral.

Para a sociolinguística, o padrão culto da língua, que é baseado nos grandes literatos e não na língua praticada pelo povo, sempre gerou “preconceitos linguísticos”. Dessa forma, prega a convivência e a aceitabilidade das diversas formas de falar, sem hierarquizá-las. De acordo com esses estudos, não há uma forma errada de falar ou escrever e sim variações. Comente sobre isso?

Acredito que a comunidade letrada deveria defender o respeito às variedades linguísticas. A norma culta da língua impõe uma referência de ortografia (grafia certa), mas nada impede de no dia-a-dia utilizarmos o acreano, desde que soubermos que, na língua formal, o padrão se tornou o acriano. Mas há um porém, pois a forma acreano foi a utilizada pelos letrados durante todo esse tempo e a mudança fere os “brios” deles. O povo analfabeto, maioria no Acre Território, sequer sabia grafar o gentílico. Mas o acriano sempre foi mais popular na língua falada. E a cultura oral sempre foi muito forte no Acre. No entanto, os “doutos” são quem dominam a cultura acriana e são eles a referência no que diz respeito à “beleza estética” literária. Posso dizer que o que está por trás da defesa do acreano é a imposição da cultura grafocêntrica sobre a cultura oral.

A utilização do acriano na língua falada do povo pode ser explicada linguisticamente pelo conceito de arquefonema (unidade da fonologia que consiste em um conjunto de traços distintivos comuns a dois ou mais fonemas de uma língua)?

Um arquifonema é quando os fonemas perdem a capacidade de distinguir palavras. Ou seja, a mudança de um fonema por outro não altera o significado da palavra, já que a diferença entre eles é neutralizada, nesse caso, por uma sílaba átona. Todos nós sabemos que a pronúncia do acreano soa como acriano, ninguém fala “acréano”. Nesse aspecto, o Novo Acordo Ortográfico aproximou, talvez despropositadamente, a escrita da tradição oral.

E o que o senhor conclui de tudo isso?

Então, considero a defesa do acreano um preciosismo desnecessário, pois no Brasil o que não falta são exemplos de mudanças na grafia de nomes de pessoas e de lugares. Até 1931, por exemplo, nós tínhamos a grafia Brazil com “Z”. A mudança do “z” pelo “s” mudou a história desse País ou afetou a identidade dele? Até essa data era comum escrever Ruy Barbosa com “y”, hoje percebemos que o nome próprio é mais frequente a escrita dele com “i”. O jurista deixou de ser o que foi com a mudança de um fonema por outro? Temos o caso de Manaus, que no século XIX era grafada Manaós”. No Acre, temos Xapuri, que antes era escrito “Xapury”. Sem dizer de mudança radical de toponímico como no caso de Tarauacá (Seabra), Senador Guiomard (Quinari), Mâncio Lima (Japiim), etc. Nós até poderíamos adotar a postura dos políticos e letrados baianos que insistiram pela permanência do “h” no gentílico, mas isso faria grande diferença? A grafia acreano ou acriano pouco ou nada vai interferir na vida dos desempregados e daqueles que vivem na dependência do Bolsa Família? Poderíamos estar discutindo coisas maiores. Mas essa é minha humilde opinião. E quem disse que eu estou certo?
 
Por JORGE NATAL
DA CONTILNET

Postar um comentário

ATENÇÃO: Não aceitamos comentários anônimos

Postagem Anterior Próxima Postagem