Em doutorado comentado pelo governador Tião Viana, médico Marcelus Negreiros mostra que houve “pouquíssimo” cuidado com a saúde dos heróis nordestinos
Todos os anos, o mundo comemora a vitória dos países aliados na Segunda Guerra Mundial. Também festeja a ajuda que o Brasil deu produzindo borracha para fabricar o armamento que permitiu aos aliados alcançar a vitória. Do ponto de vista oficial, tudo transcorreu bem. Tudo foi um sucesso desse lado ocidental. Mas pouca gente sabe a que custo se deu, de fato, a propalada ajuda brasileira.
Para o médico e professor Marcelus Antonio Motta Prado de Negreiros, da Universidade Federal do Acre (Ufac), a ajuda aos aliados, no entanto, foi baseada em muita, mas muita falta de cuidados dos governos brasileiro e norte-americano com a saúde dos milhares de nordestinos que vieram para a Amazônia produzir borracha.
A constatação do médico Marcelus está nas diversas entrevistas que fez com os próprios soldados da borracha para embasar a tese de doutorado que acaba de apresentar e aprovar na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), falando dos cuidados dispensados à saúde dos brasileiros que produziram borracha durante a Segunda Grande Guerra, dentro do acordo firmado entre o Brasil e os Estados Unidos.
“Pretendi resgatar as memórias e histórias sobre o cuidado da saúde desses brasileiros que foram submetidos a vulnerabilidades e traumas culturais, sociais, familiares e de saúde, em prol de acordo que rendeu ao governo brasileiro pouco mais que o Banco da Amazônia e a Usina de Aço de Volta Redonda (RJ)”, assinala Marcelus Negreiros, 38 anos, casado com a médica Márcia Vasconcelos, pai de dois filhos e amazonense residente no Acre há quase 10 anos.
Em sua tese de doutorado, intitulada “Trajetórias e memórias sobre a saúde dos soldados da borracha em seringais do Acre”, que teve entre os cinco doutores da banca examinadora da USP o médico e governador Tião Viana, o doutor Marcelus Negreiros destaca que houve “pouquíssimo” cuidado com a saúde dos soldados da borracha.
“O jovem trabalhador era deixado à míngua, sem qualquer proteção prometida no ato de seu alistamento”, assinala o médico, ao ressaltar que o cuidado com a saúde dos soldados da borracha esteve diretamente relacionado aos maus bocados pelos quais passaram os bravos nordestinos que vieram para a Amazônia.
Na região, segundo lembra o médico, morreram de várias doenças, entre as quais a malária e o beribéri, cerca de 25 mil dos 75 mil soldados da borracha enviados do Nordeste para extrair o látex nos antigos e isolados seringais. Naquela época, quem não morreu, passou muita dor, aflição e sofrimento pelas várias doenças e dificuldades que atacavam em todas as frentes da selva.
Nas entrevistas, entre as doenças, os seringueiros enumeram por ordem de maior gravidade a malária, a icterícia (hepatite viral), o beribéri (fraqueza muscular e dificuldades respiratórias) e várias doenças entéricas, causadas por bactérias coliformes e transmitidas quase exclusivamente pela contaminação fecal da água e dos alimentos.
Estratégia desastrosa dos governos brasileiro e norte-americano
Em sua tese de doutorado, o médico Marcelus Negreiros destaca que os cuidados com a saúde dos soldados da borracha, particularmente relacionados ao saneamento básico na Amazônia, foram acertados em nível de cooperação internacional entre Brasil e Estados Unidos.
Apesar disso, segundo ele, os governos dos dois países foram responsáveis pela “desastrosa estratégia” montada para cuidar da saúde dos jovens nordestinos estimulados a migrar para a Amazônia. A irresponsabilidade governamental começou com a mentira oficial de que haveria medicamentos de graça para todos os migrantes
“Os dois governos gabavam-se, por exemplo, de terem fornecido cerca de 15 milhões de comprimidos de Atebrina para o combate à malária”, assinala o médico, ao informar que sua pesquisa e os estudos dos professores Samuel Benchimol e Pedro Martinello demonstraram que a Atebrina e outros tipos de medicamento “eram vendidos nos barracões dos seringais”. “No mínimo, isso foi uma infelicidade gerencial dos responsáveis”, completa.
Os descuidos dos dois governos com relação à situação dos nordestinos na Amazônia foram bem definidos no “discurso de sujeito coletivo”, constante da entrevista feita com soldado da borracha cujo nome Marcelus prefere omitir. “Eles falavam o seguinte: que quando chegasse aqui tinha estrada roçada, casa feita e tudo. Lá no Nordeste, diziam que aqui era um Deus novo e que a gente ganhava a vida sem trabalhar e sem dar duro. Mas não tinha nada! Era uma porqueira”, assinala o soldado.
E completou em seguida: “Eu nunca chorei nem quando meu pai faleceu, mas nesse dia eu chorei. Quando eu cheguei nas matas, num barraco velho de palha, eu fiquei com uma tristeza tão grande que se eu pudesse ter criado asa eu teria voado de volta pro meu Nordeste! A gente comeu o pão que o diabo amassou...”.
A entrevista de Marcelus com outro seringueiro da década de 40 do século passado explicita outro aspecto do péssimo tratamento recebido pelos nordestinos por parte dos seringalistas, que mandavam nos seringais. “O patrão era um ditador! Quem mandava no Acre eram os seringalistas. Era um verdadeiro império. Os coronéis do Nordeste eram os seringalistas da Amazônia. Então, você ia trabalhar ou como empregado braçal ou como seringueiro. O patrão tratava a gente como se fosse um rebanho de burros. O patrão tinha remédio no barracão, e a gente comprava”, assinala.
O mesmo soldado da borracha completa: “As medicações que tinha no barracão eram Refodol, Tártaro, Afundam, Glucantime, Camuquim, Ararem, Metoquina, Tebrina, Caboquinha, Melhoral, Quinaquina, tinha Injeção Azul, Penicilina, Tiro Seguro, Bristo, Paludon, Esplena, Soro Antiofídico. Esses eram os nossos remédios para tratar de tudo. Aqui não tinha médico, não senhor! Às vezes curava com o tempo mesmo. Ou o camarada ficava bom ou camarada morria”.
Em outra entrevista, outro soldado da borracha detalha até o tipo de assistência proporcionada às mulheres grávidas dos seringais. Especificamente sobre os partos, ele relata: “Deus dava o jeito - ou paria ou morria, porque lá não tinha recurso, e também não morria muita criança não. Agora era um lugar que, se a pessoa adoecesse, ou ficava bom ou morria”. (R.A.)
Tião Viana sugere livro para dar voz aos heróis nordestinos
Ao inquirir Marcelus Negreiros como um dos cinco doutores da banca examinadora da USP, o governador Tião Viana não só o aprovou como doutorando como sugeriu que sua tese fosse transformada em livro para registrar na história brasileira a voz dos heróis nordestinos que vieram produzir borracha no Acre e nos demais Estados amazônicos.
Tião Viana destacou a importância da dissertação de Marcelus e enalteceu o fato de ela estar baseada nos relatos dos próprios soldados da borracha e não nos livros de história, que geralmente são elaborados a partir de informações de instituições e não de relatos contados pelas próprias pessoas que vivenciaram os problemas.
O governador também sugeriu que a tese de doutorado fosse enriquecida com a inclusão das principais doenças da região na época, informando que a malária, por exemplo, não era restrita ao Norte do país, pois existia uma epidemia vigente no Nordeste brasileiro. Viana destacou que a malária tinha, na época, uma maior prevalência do tipo Vivax.
Tião Viana também ressaltou a necessidade de incluir a hanseníase, que inexiste na fundamentação teórica da tese. Ele lembrou que o problema da hanseníase é combatido na região desde o início do século passado, com unidades de cuidados em Cruzeiro do Sul, no Acre, e na Colônia Antônio Aleixo, em Manaus (AM).
Sobre a composição familiar, após o grande processo migratório de trabalhadores para a Amazônia no início do século - outra questão abordada na tese de doutorado -, Tião Viana sugeriu que fosse refletido o ambiente dessas unidades com os casamentos tão precoces e arranjados pelas famílias, que transformavam meninas ainda crianças em esposas. Via de regra, isso não evoluía para um ambiente adequado e harmônico.
Médico de família e comunidade do Hospital das Clínicas do Estado e professor do Centro de Ciências da Saúde e do Desporto da Universidade Federal do Acre (Ufac), Marcelus Antonio Motta Prado de Negreiros formou-se em medicina pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), fez residência médica no Acre, cursou mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e agora se tornou doutor em saúde pública pela Universidade de São Paulo (USP). (R.A.)
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